sexta-feira, 26 de maio de 2023

Chamados suplicantes




1) Em seu livro sobre Dante (Dante como poeta do mundo terreno), Erich Auerbach escreve que o recurso artístico preferido de Dante é a "apóstrofe", ou seja, a interrupção súbita do discurso que o orador ou o escritor faz, dirigindo-se a alguém ou a algo, real ou fictício (como a voz que fala com Auxilio Lacouture em Amuleto, de Roberto Bolaño: che, Auxilio, qué ves?); ou ainda, palavra ou sintagma nominal que iniciam um enunciado, para indicar o destinatário da mensagem (como na frase inicial do conto "Biografia de Matviéi Rodiónytch Pávlitchenko", de Isaac Babel, em O Exército de Cavalaria: "Conterrâneos, camaradas, meus irmãos de sangue!").

2) Para Auerbach, a apóstrofe em Dante não é mero artifício técnico, mas expressão natural da força do seu espírito. Esse dispositivo diz respeito à súplica e à evocação, buscando um salto abrupto da posição da escrita em direção à posição da leitura, como uma abreviação do tempo e do espaço; Auerbach diz que nos versos de Dante que fazem uso da apóstrofe é possível reconhecer uma "convocação enfática", às vezes uma "evocação clamorosa" ou um "chamado suplicante". Nesse sentido, é possível relembrar a frase de Herman Melville em Bartleby, the Scrivener: "Ah Bartleby! Ah Humanity!"; ou Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios (15:55): Onde está, ó morte, a tua vitória?.

3) Mas é só na Divina Comédia que essa forma encontraria plena expressão, escreve Auerbach: "Seria preciso transcrever cem versos da Divina comédia, ou quem sabe mais, se quiséssemos dar uma ideia do quão rico é seu grande poema em termos de apóstrofes (...) Fazem parte dessa longa lista ordens imperiosas e pedidos ternos, súplicas em face da mais profunda dor e demandas altivas, apelos patéticos e exortações pedagógicas, saudações amigáveis e reencontros doces; algumas dessas apóstrofes são preparadas com grande antecedência, espalhando-se, após toda uma progressão de períodos, por vários versos impressionantes" (Dante como poeta do mundo terreno, trad. Lenin Bárbara, ed. 34, 2022, p. 64-65).

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