sábado, 30 de abril de 2022

Agruras



1) A arte ambiciona reproduzir a natureza, lugar e matriz de toda perfeição? Ou é uma sublimação da matéria, um aperfeiçoamento, um processo de eliminação das impurezas, de fixação de um momento extra-ordinário, atemporal, mágico? Partindo de uma célebre dicotomia, cimentada pelo trabalho dos Quatro Grandes Filólogos (Auerbach, Curtius, Spitzer, Vossler), é possível dizer que as duas perguntas correspondem a dois encaminhamentos canônicos da história da literatura: o dantismo e o petrarquismo.

2) O primeiro é o reconhecimento do cosmo como "grande obra", escrita pela mão de Deus. Daí decorre o trabalho do poeta, perene imitação, dedicada, tenaz, comprometida. Quanto mais distante da revelação divina, pior será o trabalho do poeta (uma criação afastada, de certa forma, da Criação). O percurso que decorre de Petrarca, por outro lado, diz respeito à poesia como sublimação das agruras humanas (o significante não está aí por acaso: faz pensar nas Agruras do verdadeiro tira, de Bolaño), harmonização de um drama visando transformar a dor em beleza.

3) Não é por acaso que um dos últimos grandes petrarquistas tenha sido Baudelaire, com sua vida completamente absorvida pelo século XIX - nascido em 1821, morto em 1867. Com o "maneirismo" da sua poesia acreditava poder criar "as flores do mal", a beleza ainda possível no caos da cidade, uma beleza impura, heterogênea - "artificial" como os "paraísos" que ele contrastava com o inferno de sua contemporaneidade (por esse percurso, é possível novamente chegar a Bolaño, também ele petrarquista, que faz poesia do sofrimento: La palabra coño, metamorfoseada en la palabra arte, le había salvado la vida - sem esquecer, evidentemente, a epígrafe baudelairiana de 2666).

terça-feira, 26 de abril de 2022

Ver, amar


1) Em um ensaio de 1961 dedicado a Georges Simenon ("Simenon, milagre cotidiano", hoje em Il metodo de Maigret, Adelphi, 2018), Leonardo Sciascia resgata uma entrevista do escritor francês na qual o entrevistador o coloca diante de três nomes: Dostoiévski, Gógol e Balzac. Qual deles escolheria como seu "protetor", pergunta o entrevistador, cita Sciascia - e a resposta de Simenon é certamente Gógol. "É um nome que não ocorreria a ninguém, ao pensar em Simenon", comenta Sciascia. O entrevistador busca aprofundar a questão e pergunta "O que de Gógol?", ao que Simenon responde: "Almas mortas, sem dúvida, sobretudo por conta do espírito criador de Gógol, seu modo de recriar o mundo. Em segundo lugar, escolheria Tchékhov".

2) Gógol e Tchékohv, comenta Sciascia, "o escritor que vê e o escritor que ama". Retrospectivamente, Sciascia encontra pleno sentido nas escolhas de Simenon, já que sua obra é feita a partir da combinação do olhar e do amor, ou seja, de Gógol e de Tchékhov: "Maigret vê porque ama", é a fórmula construída por Sciascia, ou seja, o detetive de Simenon observa os detalhes das vidas porque ama aqueles que vivem tais vidas, porque se preocupa com os destinos individuais, com as peculiaridades (e não com as linhas gerais da razão e da lógica, como Holmes ou Dupin). Simenon ama "religiosamente" a vida, escreve Sciascia, como ninguém mais fez com tal intensidade após Tchékhov. 

3) É digno de nota também o contato de Simenon com Gógol por meio das "almas mortas", espécie de ponto nevrálgico do gênero detetivesco (que visa transformar a morte em narração, partindo dela - ou seja, do fim por excelência - em direção a um recomeço, a uma retomada, pela via do relato). É o ponto que organiza também boa parte da poética de Sciascia: os livros sobre Raymond Roussel e Ettore Majorana, por exemplo, são tentativas de dar organização narrativa à morte, como também o projeto sobre Aldo Moro (que é uma passagem da crônica em direção ao detetivesco, sendo o investigador também o narrador e, ainda nos moldes de Poe-Dupin, também um leitor dos jornais). 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Vida porca



1) Lendo o romance de Massimo Bontempelli (1878-1960), La vita intensa, publicado em revista ao longo do ano de 1919 (e como livro no ano seguinte), encontro o seguinte trecho: Pensai anche vagamente di scrivere un romanzo di costumi intitolato appunto La porca vita, ma i tempi non erano maturi per un titolo di quel genere (p. 87, Mondadori, 1998). O título imaginado desse possível romance surge quando o narrador-protagonista fala da "oração" que realiza todos os dias antes de dormir e depois de acordar: "quanto tempo ainda deve durar essa vida porca?". É revelador também que a interdição ao possível título decorre dos "tempos", ou seja, da época, da sociedade, dos costumes, que não estariam "maduros" para acolher uma obra com esse título.

2) Foi exatamente esse o argumento utilizado por Ricardo Güiraldes para convencer Roberto Arlt (que na época trabalhava como seu secretário) a não utilizar a expressão La vida puerca como título de seu primeiro romance, de 1926 (que se chamará El juguete rabioso e que é dedicada a Güiraldes), ou seja, que não era adequado aos tempos e costumes. Além da relação subterrânea entre os significantes escolhidos por Bontempelli e Arlt (que de certa forma cristalizam em linguagem uma sensação compartilhada de angústia, desamparo e escassez típica do primeiro pós-guerra), é possível notar que a expressão proposta por Arlt já é uma monstruosidade linguística dentro do espanhol, cujo objetivo é resgatar e ressignificar uma imprecação dos pais e avós imigrantes (porca vita!). 

3) Outro aspecto interessante e antecipatório de La vita intensa é que, no último capítulo, Bontempelli faz todos os personagens reaparecerem para confrontar o narrador-protagonista, evocando os Seis personagens de Pirandello (cuja primeira apresentação foi em maio de 1921). A trilha experimental de Bontempelli foi retomada décadas depois por Italo Calvino, que publica em 1979 Se um viajante numa noite de inverno: a estrutura meta-narrativa feita de dez romances-capítulos é a mesma, com seções que não só imitam diferentes gêneros e discursos (como faz Joyce no Ulisses) mas que também negam e cancelam o que foi anteriormente afirmado e postulado (como fará Vila-Matas em O mal de Montano). 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Breves gestos



1) Breves gestos e resoluções em Alice Munro que vão, pouco a pouco, minando ou reconstruindo relações: reparos na varanda, a colheita de amoras silvestres, o despacho de um conjunto de mobília, um concurso de pesca, uma parada na estrada para comprar gim, uma reunião na piscina, panfletos na caixa de correspondência, um ensopado grosso servido numa tigela, latas de biscoitos, pratinhos de porcelana com violetas pintadas, uma cadeira com uma perna quebrada esquecida na garagem, uma peça de teatro com atores amadores, ou, como escreve Munro no parágrafo de abertura do conto que dá nome ao livro O amor de uma boa mulher

Nas últimas duas décadas, um museu em Walley tem se dedicado a preservar fotografias, batedeiras de manteiga, arreios de cavalo, uma velha cadeira de dentista, um descascador de maçãs pouco prático e outras curiosidades, como aqueles pequenos e bonitos isoladores de porcelana que costumavam ser usados nos postes telegráficos.

2) Munro recorre muitas vezes à imagem da mobília, ao conjunto de móveis e objetos que marcam o pertencimento de um indivíduo ou família a um espaço preciso, uma geografia. A mobília serve também para assinalar os pertencimentos e as filiações, sendo às vezes um estorvo na hora da mudança ou um estímulo bem-vindo quando se deve recomeçar. A poltrona ou cristaleira que passaram de geração a geração desde as primeiras décadas do século XIX, ou o aparador dado pela sogra que é condenado ao degredo em uma saleta pouco usada, todos os objetos transitam pelas histórias de Munro com um claro projeto de vida. O conto que nomeia o livro Ódio, amizade, namoro, amor, casamento começa com o problema da mobília: 

Anos atrás, antes que os trens parassem de correr por inúmeros de seus ramais, uma mulher de rosto amplo e sardento e cabelo ruivo frisado foi à estação de trem e perguntou sobre remessa de mobília.

3) No conto “Mobília de família”, do mesmo livro, a narradora visita uma tia idosa que havia sido para ela, no início da adolescência, um modelo de independência e ousadia – mas a visão de seu pequeno apartamento atulhado com a velha mobília da família relativiza essa percepção inicial. Em “Antes da mudança”, conto do livro O amor de uma boa mulher, a narradora volta para a casa do pai para passar uns tempos depois de uma separação – em suas cartas ao ex-companheiro, que constituem o armação formal da história, ela conta como esse exílio passa por uma aceitação e uma readaptação diante dos objetos da casa de sua infância. “Meu pai e eu assistimos ao debate entre Kennedy e Nixon”, escreve ela, e continua:

Ele comprou um aparelho de TV depois que você esteve aqui. Tela pequena e antenas como orelhas de coelho. Fica em frente ao aparador, na sala de jantar, tornando bem difícil pegar os talheres de prata ou as melhores toalhas e guardanapos mesmo que alguém quisesse fazer isso. Por que na sala de jantar, onde não existe nenhuma cadeira realmente confortável?

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Sobre Alice Munro



1) Como escreveu James Wood na New Yorker, Alice Munro é um daqueles nomes que pareciam fadados a permanecer, apesar da qualidade literária, longe do Nobel (Wood dá como exemplos Thomas Bernhard, Nabokov, Borges, Bohumil Hrabal e Sebald). Ainda no quesito Nobel, Alice Munro completa uma tríade de grandes escritoras que receberam o prêmio recentemente – Elfriede Jelinek, Doris Lessing, Herta Müller, Olga Tokarczuk, Svetlana Aleksiévitch e Louise Glück são os outros nomes. Mas a comparação aponta antes para um conjunto de acentuadas diferenças do que para o compartilhamento de um mesmo "universo".

2) Esse conjunto de diferenças marca a emergência de três poéticas independentes (Munro, Jelinek, Müller, digamos) e de grande força estética, que são contemporâneas, mas que trabalham com estratégias de representação muito características. Isso seria bastante óbvio se não fosse pelo fato de tanto Jelinek e Müller quanto Alice Munro trabalharem com temas afins – memória, trauma, traição, família –, que adquirem tonalidades específicas mediante o tratamento técnico levado adiante por cada uma das escritoras. Em Munro, esses temas centrais recebem uma pátina de afetividade, quase que de cuidado materno, o que fica evidente na proximidade que sua narração estabelece com os dramas familiares, em seu encadeamento minucioso das sensações criadas e cultivadas a partir de breves gestos cotidianos.

3) Parte do apelo afetivo da ficção de Alice Munro está em sua dimensão doméstica, na escolha de situações e imagens que se dão frequentemente entre membros de uma mesma família, em um ambiente carregado de peso memorialístico. Não vemos tragédias de amplas proporções, que terminam por refletir a "condição nacional geral", como nos livros de Philip Roth ou Norman Mailer (como em The Great American Novel, romance publicado pelo primeiro em 1973, que comenta essa pulsão romanesca no interior do próprio romance, desde o título), mas breves gestos e resoluções que vão, pouco a pouco, minando ou reconstruindo relações.