quarta-feira, 20 de abril de 2022

Vida porca



1) Lendo o romance de Massimo Bontempelli (1878-1960), La vita intensa, publicado em revista ao longo do ano de 1919 (e como livro no ano seguinte), encontro o seguinte trecho: Pensai anche vagamente di scrivere un romanzo di costumi intitolato appunto La porca vita, ma i tempi non erano maturi per un titolo di quel genere (p. 87, Mondadori, 1998). O título imaginado desse possível romance surge quando o narrador-protagonista fala da "oração" que realiza todos os dias antes de dormir e depois de acordar: "quanto tempo ainda deve durar essa vida porca?". É revelador também que a interdição ao possível título decorre dos "tempos", ou seja, da época, da sociedade, dos costumes, que não estariam "maduros" para acolher uma obra com esse título.

2) Foi exatamente esse o argumento utilizado por Ricardo Güiraldes para convencer Roberto Arlt (que na época trabalhava como seu secretário) a não utilizar a expressão La vida puerca como título de seu primeiro romance, de 1926 (que se chamará El juguete rabioso e que é dedicada a Güiraldes), ou seja, que não era adequado aos tempos e costumes. Além da relação subterrânea entre os significantes escolhidos por Bontempelli e Arlt (que de certa forma cristalizam em linguagem uma sensação compartilhada de angústia, desamparo e escassez típica do primeiro pós-guerra), é possível notar que a expressão proposta por Arlt já é uma monstruosidade linguística dentro do espanhol, cujo objetivo é resgatar e ressignificar uma imprecação dos pais e avós imigrantes (porca vita!). 

3) Outro aspecto interessante e antecipatório de La vita intensa é que, no último capítulo, Bontempelli faz todos os personagens reaparecerem para confrontar o narrador-protagonista, evocando os Seis personagens de Pirandello (cuja primeira apresentação foi em maio de 1921). A trilha experimental de Bontempelli foi retomada décadas depois por Italo Calvino, que publica em 1979 Se um viajante numa noite de inverno: a estrutura meta-narrativa feita de dez romances-capítulos é a mesma, com seções que não só imitam diferentes gêneros e discursos (como faz Joyce no Ulisses) mas que também negam e cancelam o que foi anteriormente afirmado e postulado (como fará Vila-Matas em O mal de Montano). 

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