quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Tempo, morte, família


1) Em seu livro dedicado a Alejandra Pizarnik, César Aira escreve sobre o surrealismo: a ideia de que se o artista produz algo de banal usando as técnicas do surrealismo, ainda assim estará produzindo algo de banal, desinteressante, inócuo. A técnica se submete ao talento, e não o contrário. Aira afirma que, quando Pizarnik começa a escrever, na década de 1950 (ela nasce em 1936), o surrealismo já é uma relíquia do passado e que já está morto: Pizarnik então "instrumentaliza a metodologia de uma escola morta", continua Aira, "como alguém que usa o relógio de um parente morto". 

2) A imagem é excelente e fica ainda mais valorizada pela rapidez com que Aira a emprega, logo partindo em direção a outra frase, outra ideia (a ideia de que o surrealismo já nasceu morto e que, por isso, segue circulando de forma póstuma e sempre renovada). A imagem funciona não apenas porque o relógio é um símbolo/artefato tão ligado ao surrealismo, mas especialmente porque faz pensar simultaneamente em três elementos: o tempo, a morte e a família (uma triangulação que é fundamental não apenas para a poética de Pizarnik, mas para boa parte da literatura feita desde Homero - esses três elementos, tempo, morte e família, não resumem também a Odisseia?).

3) Em um breve texto sobre Pizarnik, Enrique Vila-Matas (também ele um continuador, ou ao menos um entusiasta do surrealismo) fala sobre o suicídio e sobre a capacidade que obra/figura de Pizarnik tem de desafiar o tempo (mais uma vez o tempo, portanto - sua linguagem "resiste à passagem do tempo", escreve Vila-Matas, acrescentando ainda outras palavras à equação: "sono, morte, infância, terror, noite"). De certa forma, escreve ainda Aira, "a poesia morreu com ela"; "agir como se ela ainda estivesse viva, mesmo metaforicamente, é desvalorizá-la" (agora é Pizarnik quem deve ser levada por aí, como o relógio de um parente morto).

Nenhum comentário:

Postar um comentário