sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Tolstói e Shakespeare

1) George Steiner deu ao exercício da crítica uma feição quase agonística e quase trágica ao propor e investigar o seguinte dilema: Tolstói ou Dostoiévski, seu primeiro livro, publicado em fins da década de 1950. "A crítica literária deve brotar de uma dívida de amor", é a primeira frase do livro. Steiner defende a imperativa necessidade de marcar uma posição, confrontando duas obras e dois autores que, mesmo compartilhando aqui e ali alguns elementos, representam duas concepções de mundo e de literatura antagônicas - sem mediação, sem conciliação, sem caminho alternativo, o que Steiner postula, em Tolstói ou Dostoiévski, é a necessidade rigorosa de escolha, o tipo de postura radical que, segundo ele, fertiliza o exercício da crítica literária (algo que Susan Sontag vai explorar alguns anos depois com a ideia de "vontade radical").
2) Não parece ter passado pela cabeça de Tolstói sequer a possibilidade de se comparar a Dostoiévski. Sua dívida de amor, que era também uma dívida de ódio, de repulsa e de desespero, era com e contra Shakespeare. Harold Bloom afirma que a repulsa de Tolstói era fruto da consciência de um marco intransponível: Tolstói pressentia que era impossível ir além de Shakespeare, um pressentimento aliado a uma revolta um pouco irracional por conta do fato de Shakespeare ter chegado primeiro em termos históricos. Numa frase que parece não levar a lugar algum, Bloom escreve: "Shakespeare perturbava Tolstói porque o distanciamento deste, como autor, assemelha-se ao de Shakespeare e, nos momentos em que a arte suprema se afirma, o moralismo exacerbado cessa" (Gênio, tradução de José Roberto O'Shea, Objetiva, 2003, p. 92).
3) George Orwell, por sua vez, em ensaio publicado em 1947 ("Lear, Tolstoi e o Bobo"), é bem mais preciso. Orwell lê com cuidado o texto de Tolstói, escrito no fim da vida, no qual afirma que aos setenta e cinco anos decidiu reler mais uma vez as obras completas de Shakespeare e, mais uma vez, sentiu raiva e repulsa. Por que Tolstói escolhe para sua análise justamente Rei Lear, se pergunta Orwell. Seu resumo da peça é tendencioso, parcial, recortando trechos e enfatizando outros para defender sua tese de que Shakespeare é uma moda estúpida que durou tempo demais. Mas, para Orwell, o que Tolstói não pode suportar é o fato de se identificar com Lear, se identificar com a figura nobre que renuncia a tudo e que, como recompensa por esse gesto magnânimo, espera o respeito e a admiração daqueles que o rodeiam - mas Lear espera e não recebe, e Tolstói não pode aceitar esse fim trágico, porque é um fim que não deseja a si próprio (Orwell fala da visão anarquista de Tolstói, mas que é sustentada por uma sensibilidade autoritária, uma sensibilidade que não consegue sentir interesse por qualquer coisa que não seja ela própria - Dentro da baleia, tradução de José Antonio Arantes, Companhia das Letras, 2005, p. 173-194).    

3 comentários:

  1. Quais eram as reais objeções de Tolstoi em relação a Shakespeare? O que ele expressou contra o dramaturgo inglês em livros como "Shakespeare e o Drama" e "O que é arte"?

    Tolstoi apenas identificava uma "falta de compromisso moral" nas obras de Shakespeare?

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  2. Falcão,

    O espaço para comentários também comporta perguntas? Também poderia comportar respostas?

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  3. Infelizmente não sei as respostas para suas perguntas, George. Agradeço o contato.

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