Van Gogh, Descanso do trabalho, 1890 |
1) Em um de seus nove ensaios sobre Dante, aquele sobre a fome de Ugolino (que Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, seleciona como o ensaio emblemático do contato de Borges com a tradição literária italiana), Borges fala da incerteza, a incerteza que marca a imortalidade de Hamlet (louco e são, simultaneamente) e que marca a "estranha matéria" da qual é feito Ugolino, imortal no espaço entre devorar e não devorar seus filhos (a própria ideia da "estranha matéria da qual é feito Ugolino" é uma citação shakespeareana, que remete, também ela, como que reforçando o campo simbólico da ideia que Borges enuncia, ao sonho, à incerteza e ao caráter instável da percepção e da verdade). Borges escreve que Dante sonhou Ugolino entre duas agonias possíveis - comer os filhos, morrer de inanição -, e que esse sonho de Dante é sonhado pelas "gerações vindouras", um sonho que certamente nos alcança e certamente nos ultrapassará.
2) Vasari fala muito indiretamente dos sonhos dos artistas em seu Vidas dos artistas, porém, em paralelo a essa esquiva, existe a construção de um espaço simbólico que diz respeito à revelação, à visão diferenciada e à abrupta iluminação dos artistas (glória, grandeza, espanto, maravilha, entre muitos outros termos, funcionam para Vasari como essas marcas de passagem entre um estado inicial da arte e um profissional, estabelecido por Cimabue - na Vida de Cimabue Vasari cita Dante, o canto XI do Purgatório). Na Vida de Paolo Uccello, por exemplo, Vasari insiste no registro dos devaneios do pintor (signo tanto de sua capacidade de trabalho e de inovação quanto de sua incapacidade para os negócios), devaneios que levavam Uccello a um nível abstrato de observação do real, em busca das regras ocultas da perspectiva.
3) O sonho ainda não é para Vasari, como é para Borges, um veículo da transmissão cultural e artística. Na reescrita que propõe das Vidas de Vasari, Marcel Schwob, em Vidas imaginárias, dá um passo em direção a essa percepção, e a partir daí pode se perceber parte dos motivos que levaram Borges a exaltar a poética de Schwob. Quem recolhe todos esses fios e os encaixa em um único corpo ficcional é Antonio Tabucchi, em 1992, com Sonhos de sonhos. O livro é um inventário de verbetes biográficos (Freud, Caravaggio, Rimbaud, entre outros) que se resolve não na dimensão historiográfica (mesmo apócrifa, como acontece em Schwob ou Borges), mas na dimensão onírica, dentro da qual inúmeros pontos-chave das poéticas dos artistas biografados abandonam o rigor cronológico e se condensam em imagens delirantes (criadas por Tabucchi).
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