Nicolau I, 1796-1855 |
1) Duas cenas análogas de quase morte: Dostoiévski diante do pelotão de fuzilamento em 1849, Maurice Blanchot capturado pelos nazistas e salvo no último momento por uma explosão (eis o "instante da minha morte" que ele ficcionaliza em 1994). Um fio subterrâneo liga o regime repressivo de Nicolau I e a ocupação nazista da França (um fio que passa pelo 18 de brumário de Marx e pela Educação sentimental de Flaubert, ambos fixados no fevereiro de 1848 em Paris). Tanto a revolta de Dostoiévski quanto a repressão de Nicolau I foram em parte motivados pelos eventos revolucionários franceses.
2) Essa cena de quase morte de Dostoiévski prefigura o nascimento da biopolítica segundo Foucault - a intensificação do "fazer viver" sobre o "fazer morrer", ou seja, a manutenção e coerção mais do que a eliminação. Não tanto a decisão entre um extremo e outro, a definitiva declaração de "condenado" ou "absolvido", mas esse espaço indeterminado de dúvida, esse espaço que contém Dostoiévski simultaneamente vivo e morto, em suspenso. É nesse espaço que o poder do soberano se ergue em triunfo, e segue reverberando mesmo depois do perdão, da misericórdia. Pois esse ato de perdão deve ser carregado, como um fardo, ao longo de todo o resto de vida do sobrevivente.
3) "A noção de Misericórdia é estritamente correlativa à de Soberania", escreve Slavoj Zizek, "apenas o portador do poder soberano pode conceder misericórdia" (O amor impiedoso, tradução de Lucas Mello Carvalho Ribeiro, Autêntica, 2012, p. 202). Há uma analogia estrutural também entre o par formado pelo regime pré-biopolítico e o regime biopolítico (e a zona cinza entre um e outro figurada na cena do perdão de Dostoiévski) e o par formado por Zizek entre "a rigorosa Justiça judaica" (pré-biopolítico) e a "Misericórdia cristã", uma misericórdia análoga àquela de Nicolau I, pois esconde sob sua generosidade uma carga imensa de culpa e dívida ("o nome freudiano para tal pressão excessiva, que nunca podemos quitar, é, claro, supereu", escreve Zizek). Talvez esse seja o caminho que permita uma sobreposição crítica entre a faceta religiosa e a faceta política (revolucionária) da ficção de Dostoiévski (e de discípulos contemporâneos seus, como Coetzee (o cruzamento entre política e religião em livros como À espera dos bárbaros ou A infância de Jesus, por exemplo) e Aleksandar Hemon (o projeto do Projeto Lazarus leva em conta justamente essa articulação entre destino (subjetividade) e revolução (História, sobreposição de temporalidades, contato entre os anarquistas de Chicago em 1908 e a guerra da Bósnia em 1992)).
incrível, melhor blog para se debruçar na leitura. virei fã!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, Antônio!
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