1) Na Vida que escreve para Paolo Uccello, que é em grande medida uma reescrita da Vida feita por Giorgio Vasari no século XVI, Marcel Schwob acrescenta um desvio: a obra suprema de Uccello, que Vasari registra como finalizada e tendo como motivo Cristo e São Tomé, é "apenas um emaranhado de linhas". Schwob prepara o terreno dessa revelação afirmando que "o Pássaro envelheceu", ou seja, Uccello, e que "ninguém compreendia mais seus quadros", "viam apenas uma confusão de curvas". Aqueles que observavam as obras da velhice de Uccello "não reconheciam mais nem a terra, nem as plantas, nem os animais, nem os homens" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 99-100).
2) Vasari fala da fascinação de Uccello com a perspectiva e da quantidade de pequenos detalhes problemáticos (escorços, chapéus, colunas) que o pintor deliberadamente buscava em seu trabalho. Uccello, nesse sentido, foi uma espécie de precursor de Descartes, em seu fascínio com a ótica, a cartografia e a geometria. Existe um elo possível entre a sensibilidade de Vasari para o artista maníaco - como Uccello, que abandonou o mundo real e caminhou progressivamente em direção a um mundo ideal, mas que jamais abandonaria a figuratividade e a coerência das imagens (isso lhe era historicamente inacessível) - e a sensibilidade de Schwob para o mesmo personagem, e a ficção de Schwob indica que esse elo está na Obra-prima desconhecida de Balzac.
3) No conto de Balzac, existe a mesma "confusão de curvas", o
mesmo "emaranhado de linhas" que Schwob apresenta na obra final de
Uccello (que foi terminada, que era "visível", mas que se perdeu, conta
Vasari). Mas antes desse momento final de identificação há uma série de
pistas na ficção de Schwob que reforçam um vínculo mais subterrâneo,
centrado na figura feminina. Isso é fundamental porque a loucura de
Frenhofer, o pintor de Balzac, está ligada ao corpo de uma mulher, à
carne, ao desejo impossível de criar a carne através da tinta (daí
a ideia de "pintura encarnada" no comentário de Didi-Huberman). É nessa
impossibilidade que nasce diante do corpo feminino que o Uccello de
Schwob se une ao Frenhofer de Balzac: Uccello se apaixonou, conta
Schwob, e levou Selvaggia (esse era seu nome) para casa; "não havia o
que comer na casa de Uccello", escreve Schwob; "Selvaggia não ousava
dizer a Donatello nem aos outros. Ela se calou e morreu".
Giorgio Vasari, 1511-1574 |
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