sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um tom apocalíptico

1) Como já dizia Derrida, nosso tempo é o tempo de um tom apocalíptico que teima em escorrer pelas análises, prognósticos e balanços, não apenas na filosofia mas em todo discurso crítico ou teórico. É como uma muleta, um anteparo, que dá sustentação ao desejo de abandonar o rigor e o comprometimento sob a desculpa de que, afinal de contas, o estado das coisas é caótico, descontínuo e errático, por que se incomodar? Nada de novo: o tom de Tirésias não era também um tom apocalíptico? O tom de João, na ilha de Patmos, não era também um tom apocalíptico?
2) Para Sebald, o que está em jogo é uma determinada "relação com a história", que determina, em infinitos graus, o contato e a reação do sujeito diante desses fluxos apocalípticos. "Nossa relação com a história", escreve Sebald em Austerlitz, "era uma relação com imagens já predefinidas, impressas no recôndito dos nossos cérebros, imagens que continuamos a mirar enquanto a verdade reside em outra parte, em algum lugar remoto que ninguém ainda descobriu" (tradução de José Marcos Macedo, Companhia das Letras, 2008, p. 75). A posição de Sebald, evidentemente, é contrária: ele quer quebrar essa relação viciada com a história e acessar esses lugares remotos, lugares que estão disponíveis tanto no tempo como no espaço - e por isso as imagens, porque oferecem, ainda que brevemente, essa simultaneidade.
3) Chega um momento, portanto, depois de muito silêncio, muito trabalho e muita reflexão, que o desenfreado caminho para o futuro passa por uma metamorfose: transforma-se em análise do passado e de seus eventos que permaneceram pouco tocados ou pobremente explorados. "De minha parte", escreve Harold Bloom, "desaprovo a moda acadêmica segundo a qual a Renascença Européia é identificada como 'Europa do Início da Modernidade'. Antes, proponho uma volta à noção de Pós-iluminismo, movimento de grande escala que separa Milton de Shakespeare, e entende a literatura, desde Milton até o presente, como longo processo contínuo". A ideia do "longo processo contínuo" é apressada e parece gratuita, mas o que vem em seguida é interessante: "O Romantismo, o chamado Modernismo e o ainda mais arbitrário Pós-modernismo parecem-me nada mais do que fases da sensibilidade Pós-iluminista. Shakespeare, Cervantes e Montaigne são tão grandes que contêm movimentos que ainda estão por surgir: jamais conseguiremos exaurir tais autores" (tradução de José Roberto O'Shea, Gênio, Objetiva, 2003, p. 710).
4) Vemos, paulatinamente, uma inversão do cenário: o futuro aparecia como estéril, desprovido de esperanças ou possibilidades; contudo, sua esterilidade está diretamente ligada ao descaso com o passado e, principalmente, com a desatenção com relação ao fato de que ele segue passando, prenhe de possibilidades. Bloom diz que Shakespeare, Cervantes e Montaigne ainda não foram completamente lidos: seus textos estão carregados de possibilidades (estéticas, formais, linguísticas) que "ainda estão por surgir". Milan Kundera, na conversa que teve com Philip Roth, mostra que pensa na mesma direção, acrescentando os nomes de Sterne, Rabelais e Diderot: "Eles foram os maiores experimentadores formais de toda a história do romance. (...) Sterne e Diderot viam o romance como um grande jogo. (...) Quando ouço pessoas argumentando a sério que o romance esgotou suas possibilidades, o que sinto é exatamente o contrário: no decorrer da sua história, o romance deixou de lado muitas possibilidades. Por exemplo, há impulsos para o desenvolvimento do romance ocultos em Sterne e Diderot que não foram explorados por nenhum sucessor" (tradução de Paulo Henriques Britto, Entre nós, Companhia das Letras, 2008, p. 103).

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Dia de finados

Sabina protesta. Diz que os conflitos, os dramas, as tragédias não significam nada, não têm nenhum valor, não merecem respeito nem admiração. O que todo mundo pode invejar em Franz é o trabalho que ele consegue desenvolver em paz.
Franz balança a cabeça: "Numa sociedade rica, os homens não têm necessidade de trabalhar com as mãos e se dedicam a uma atividade intelectual. Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para obter seus diplomas, precisam encontrar temas de dissertação. Existe um número infinito de temas, pois se pode falar sobre tudo. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos, que são mais tristes do que os cemitérios, porque não se vai até eles nem mesmo no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, numa avalanche de frases, na demência da quantidade. Acredite em mim, um só livro proibido em seu antigo país significa infinitamente mais do que as milhares de palavras cuspidas pelas nossas universidades".
Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. p. 123.

Em outro lugar, Kundera escreve que a palavra intelectual, durante os dias ensolarados do comunismo na Boêmia, era a pior injúria possível. Nenhum personagem carrega a totalidade de suas ideias e crenças - mas é inegável que Kundera coloca em suas bocas reflexões que lhe dizem respeito. Kundera está interessado em investigar as repercussões estéticas do terror, por isso ocupa toda a sexta parte de A insustentável leveza do ser (intitulada "A Grande Marcha") com uma discussão sobre o kitsch - produzindo frases como: "Aquilo a que chamamos 'gulag' pode ser considerado uma fossa séptica em que o kitsch totalitário joga suas imundícies'. Nesse sentido, ainda que não seja desenvolvido em seguida por Kundera, o trecho em que Franz declara que um só livro proibido em seu antigo país significa infinitamente mais do que as milhares de palavras cuspidas pelas nossas universidades coloca uma curiosa armadilha de ordem estética: a valorização imediata de todo objeto artístico que provenha de uma região conturbada. Mais adiante, quando Sabina, a interlocutora de Franz, estiver nos Estados Unidos, sua carreira decolará justamente por isso: os compradores de seus quadros serão aqueles que desejam oferecer algum tipo de reparação àquela vítima (que, por sorte, é uma artista que oferece, com sua produção, essa possibilidade tão palpável de redenção) das atrocidades cometidas no Leste Europeu.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O filho de Stálin

Só em 1980 se soube da morte do filho de Stálin, Iacov, por um artigo publicado no Sunday Times. Prisioneiro de guerra na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, ele ficou no mesmo campo que os oficiais ingleses. Tinham latrinas comuns. O filho de Stálin as deixava sempre sujas. Os ingleses não gostavam de ver as latrinas sujas de merda, mesmo que fosse a merda do filho do homem mais poderoso do universo na época. Chamaram-lhe a atenção. Ficou aborrecido. Repetiram as repreensões e o obrigaram a limpar as latrinas. Ele se irritou, vociferou, brigou. Finalmente, pediu uma audiência ao comandante do campo. Queria que ele fosse o árbitro da discussão. Mas o alemão estava imbuído demais de sua importância para discutir sobre merda. O filho de Stálin não pôde suportar a humilhação. Bradando aos céus palavrões russos atrozes, jogou-se contra os fios de alta-tensão que cercavam o campo. Deixou-se cair sobre os fios. Seu corpo, que nunca mais sujaria as latrinas britânicas, ficou ali dependurado.

Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Tradução de Teresa Bulhões da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 275.
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O romance de Kundera investiga o kitsch, e nesse percurso se ocupa também da merda. A merda como tema, como barreira cultural, como tabu. O que torna esse trecho interessante é o substrato geopolítico por trás da discussão sobre a merda - algo que Zizek já anuncia há tempos ao falar da "ideologia das privadas" e dos três sistemas de construção, o alemão (a merda fica exposta para análise antes de ser eliminada), o francês (a merda cai rapidamente no buraco e fica fora de vista) e o inglês/norte-americano (a merda boia na abundância de água). Mas Kundera oferece outro ponto de vista, não só russo, mas também do Leste Europeu - a merda que escapa, que está para além da privada, a merda que se faz visível. Não está só e Kundera, está em Bohumil Hrabal, na cena de Uma solidão ruidosa em que Mancinka mergulha suas fitas na merda sem perceber, e passa a girar e girar no salão, fazendo de si própria uma espécie de chafariz de merda. 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Olhar a História

1) Claudio Magris foi responsável por certa redescoberta da literatura centro-europeia, principalmente a partir dos anos 1960, 1970. Publicou Danúbio, sua obra-prima, em 1986. Dez anos depois, Microcosmos, seu parente menor. Microcosmos parece um exercício de livre associação: nenhuma informação está completa, nenhum personagem é delineado até o fim. O jogo da narrativa está em seus momentos de corte, quando uma cena torna-se a seguinte, quando uma lembrança pessoal torna-se o relato de um fato histórico, etc.
2) Magris circula pelos arredores de Trieste, e está em uma floresta na divisa da Iugoslávia com a Itália. "Nestes bosques pacíficos e apartados da história", ele escreve, "tecia-se, naqueles dias de guerra, uma intrincada rede de esperanças e mentiras, projetos de liberdade e planos de violência totalitária, espírito de sacrifício e de domínio predatório". Magris está falando do momento em que Josip Broz Tito deixou de ser um herói da resistência para tornar-se um ditador.3) Se fosse um livro de Sebald, talvez tivéssemos uma foto do quadro - mas com Magris não é o que acontece. Ele apenas nos conta sobre o quadro que encontrou, "um quadro anônimo cujo comitente, o Partido, jamais foi buscar, e que jaz num sotão de Ilirska Bristica". O quadro mostra Tito e um de seus principais dirigentes, Kardelj, depois de uma caçada: o urso morto está no chão, diante dos dois homens - "não parece morto", escreve Magris, "mas deleitosamente adormecido, e até imaginamos ouvir seu ronco". Magris fala dos olhos do animal: parecem estar entreabertos, como se estivessem espiando, "zombeteiros", o líder da caçada e da política. "O olhar correto sobre a História", completa Magris, "de esguelha e dissimulado".

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O mudo

1) Há uma passagem curiosa em Alvo noturno, na qual Ricardo Piglia está contando a história de Bravo, com sua "face marcada por cicatrizes porque cortara o rosto num acidente de carro" (tenía la cara cruzada de cicatrices, diz o original, bem mais competente). Mas não é a cara de Bravo que interessa, e sim sua habilidade com o jogo de tênis: "tinha tanto talento natural para jogar tênis que o chamavam de Maneta" (tenía tanto talento natural para jugar al tenis que lo llamaban el Manco).
2) Como é seu hábito, Piglia dá uma dimensão documental ao relato, fazendo com que ele escape da página, escape da leitura imediata, e chegue à história corrente - aquele substrato discursivo que molda a vida cotidiana. E Piglia faz isso com um adendo breve entre travessões: tenía tanto talento natural para jugar al tenis que lo llamaban el Manco - como a Gardel lo llaman el Mudo - y, como todo hombre de talento natural, etc. (A tradução: "...o chamavam de Maneta - como chamavam Gardel de el Mudo -..." Companhia das Letras, 2011, p. 107 - tradução de Heloisa Jahn). O que é espetacular, e trata-se de um elemento completamente perdido na tradução, é que Gardel continua sendo chamado el Mudo, mas Bravo não - lo llamaban el Manco, é passado. Um pequeno deslize em uma tradução repleta de furos.
3) A lembrança desse trecho, como costuma acontecer, ocorreu quando entrei em contato com outro texto, completamente alheio ao contexto de Piglia. Está em Microcosmos, de Claudio Magris:
Viajar, como contar - como viver -, é deixar de lado. Um mero acaso leva a uma margem e perde outra. Na ilha dei Belli, "dos Belos", assim chamada devido à proverbial feiura de alguns de seus habitantes, havia, noutros tempos, a velha Bela, uma bruxa que fazia os ventos se levantarem, tornava infrutífera a pesca dos que não fosse gentis com ela e, por motivos semelhantes, parece, certa vez fez precipitar um avião de reconhecimento com um único gesto da mão.
Claudio Magris. Microcosmos. Tradução Roberta Barni. Rocco, 2002, p. 67.
Me regozijo na força estética de uma simples inversão irônica, passada de mão em mão, quem sabe há quanto tempo.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sacalina

O nome da ilha-prisão para a qual viajou Tchékhov é Sacalina - fica no extremo oriental da Rússia, logo acima do Japão. Tchékhov saiu de Moscou no dia 21 de abril de 1890, e só chegou em Sacalina no dia 11 de julho. Atravessou toda a Rússia, numa expedição de aproximadamente 12 mil quilômetros, sem ter certeza se sua entrada na ilha seria autorizada - teve uma reunião com o diretor da administração carcerária, que lhe prometeu uma autorização oficial que nunca chegou a ser emitida. De modo que todo o esforço de Tchékhov poderia redundar, no fim, em fracasso, em retorno de mãos abanando. O trajeto foi interminável: Tchékhov saiu de Moscou de trem, um breve trecho, até alcançar um vapor que desceu o Volga. Depois do Volga, surgiu o Kama, que Tchékhov desceu a bordo do mesmo vapor. Da cidade de Pern, ele prosseguiu de trem através dos montes Urais - e sofreu durante dias sob uma tempestade de neve. Passa por Ekaterinburg, onde aluga uma espécie de carroça e vai até Tiumien, local de saída de outro vapor.
O trajeto de Tchékhov segue as fronteiras ao sul da Rússia. A partir de Tomsk, ele segue mais um bom trecho pela estrada, passando pelo rio Ienissei e depois pelo lago Baikal. No lago Baikal, Tchékhov consegue pegar outro vapor, descendo o rio Amur ao longo da fronteira com a China. Em suas cartas, Tchékhov compara a paisagem inóspita à Patagônia e ao Texas. Em 5 de julho de 1890, o vapor chega a Nicoláievsk, de onde sai a balsa para a ilha de Sacalina.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Um Bartleby no campo de concentração

Tchékhov, na condição de médico, vai visitar uma ilha-prisão [o tipo de lugar aprazível que só os russos conseguem imaginar] na costa oriental da Rússia. Isso acontece em 1890, quando o escritor tinha trinta anos de idade. São poucas semanas de visita, e por isso Tchékhov toma notas de forma febril, observando tudo que pode, recolhendo depoimentos, percorrendo o território a pé, sem descanso. Muitas das histórias que Tchékhov recolhe carregam, sem dúvida, sua marca, ainda que não tenham sido criadas por sua mente - o que mostra que a ficção pode estar, eventualmente, em outro lugar.
Desde sua fundação, a vida em Due manifestou-se de um jeito que só pode ser representado por sons inexoravelmente perversos, desesperados, e pelo impetuoso vento frio, que nas noites de inverno sopra do mar sobre as fendas, o único a poder cantar livremente. Por isso, causa estranheza ouvir esse silêncio ser de repente quebrado pela cantoria de Skandyba, o esquisitão de Due. Trata-se de um forçado, um velho, que desde o primeiro dia de sua chegada a Sacalina recusou-se a trabalhar, e diante de sua invencível obstinação, puramente animal, todas as medidas coercitivas mostravam-se inúteis; foi posto no escuro, foi açoitado inúmeras vezes, mas suportava estoicamente o castigo e depois de recebê-lo exclamava: "Não adianta que eu não vou trabalhar!". Tentaram de tudo com ele e, por fim, desistiram. Agora perambula por Due e canta.
Anton Tchékhov. Um bom par de sapatos e um caderno de anotações. Seleção e prefácio Piero Brunello. Tradução do russo e do italiano Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Martins Editora, 2007, p. 65.