quarta-feira, 27 de maio de 2009

Os lados do círculo



A situação que inicia e encerra Os lados do círculo, de Amílcar Bettega Barbosa: um grupo de pessoas se encontra durante a noite em Porto Alegre, cada uma descendo em silêncio de uma rua diferente, cada uma segurando um objeto diferente, caminham juntas em silêncio. Na beira do rio Guaíba, na areia, depositam seus objetos, fazendo arranjos que são sempre diferentes e que permanecem ali, até o dia seguinte, até o sol nascer, até que alguém os retire dali. As pessoas abandonam seus objetos e voltam para suas casas. Esse é um culto surrealista do objeto anacronizado e ressignificado: a) Remete a Lautréamont (que está na epígrafe) e seu verso sobre a máquina de costura e o guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação (apropriado mais tarde por Breton) b) Remete ao acaso proliferante de Duchamp e dos ready-mades c) O lance de dados de Mallarmé d) Cortázar no conto “O outro céu” – que usa Lautréamont como personagem e materializa, com a imagem das Passagens (Arcadas, Galerias) urbanas, o trânsito geográfico, cultural e temporal e) Cortázar é, inclusive, “autor” de um dos contos de Os lados do círculo, deixado em um envelope, capturado por Amaro Barros, que também tem seu conto (e participa do arranjo no rio Guaíba...), onde explica tudo. Um arranjo de objetos na beira de um rio em Porto Alegre é o suficiente para lembrar que o tempo, mais do que um ilusão, é uma ferramenta ficcional que o senso comum tende a sacralizar. O tempo, portanto, é profanado em Os lados do círculo (e em muitos outros, evidentemente).


quarta-feira, 20 de maio de 2009

A cruzada das crianças.




Paul Valéry, poeta-crítico francês (1871-1945), muito apreciado por Borges & outros, principalmente por seu apuro na linguagem & sofisticação nos juízos críticos (dono de frases como "o leão é o carneiro assimilado" e "nunca se termina um livro; ele é abandonado" - a primeira utilizada por Silviano Santiago, a segunda por Vila-Matas), dedicou aquele que parece ser seu principal ensaio, ''Introdução ao método de Leonardo Da Vinci'', a Marcel Schwob -

__________________________outro francês, (1867-1905), autor de ''Vidas imaginárias'', traduzido pela 34, com prefácio de Borges, que também gostava muito deste outro francês - utilizado também por Vila-Matas, pela ficcionalização que Schwob fez de vidas reais, como faz Tabucchi, "Sonhos de sonhos" - E Valéry muito poetizou as crianças, como serpentes que se enrolam, ou ainda ouriços, que andam e falam ao mesmo tempo ("Poesia e pensamento abstrato"), próximas da vida plena e da morte plena (o inanimado, o não-ser) AO MESMO TEMPO: a criança sobrepõe os dois momentos, morte e vida. E Schwob escreve esse livro, A CRUZADA DAS CRIANÇAS - missões católicas de vários países na época das Cruzadas, que enviaram centenas e centenas de crianças, em uma procissão absurda rumo à Terra Santa, para que esta fosse reconquistada, para que Deus olhasse seus pequenos e -

__________________________ libertasse Jerusalém dos árabes malvados. Nenhuma criança chegou em Jerusalém, nenhuma criança voltou para casa.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Hoje é dia de poesia.


Um homem lento inominável
Escorrendo pelos dedos
Fora deste mundo, claro enigma imundo.

Conjurado na ilusão perdida
do banquete das almas mortas
saindo todas da mesma ferida.

De onde vem essa chaga?
Ele olha sempre pro outro
E essa resposta ainda é vaga.
Me oferece um cigarro
E entre um e outro pigarro
Me conta a saga de um perdedor:

"Sepultei a infância no fundo do abismo
Alimentei um monstro mole e indeciso
Com carne, capricho, esse ente arisco
Espécie de espaço do acaso
Minha vida era o último passo
Uma coisa é o que digo,
outra coisa é o que faço."

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Cães.


O que diz o cão?
Um cachorro sempre olha para o lugar certo.
Ele diz: "Tira essa coisa da cara"
Ele pensa que é curioso uma fotografia e uma pintura ocuparem o mesmo lugar.
"Não chega perto do meu pai"
A coleira e a cordinha são antigas, olha ali.
De couro.
O dono dá as costas para a foto e o cão faz pose.
Como se dividisse um segredo com o fotógrafo.
"Esse ângulo me favorece"

terça-feira, 14 de abril de 2009

Um rancho de palha e barro



"Não existe nada simultaneamente mais real

e mais ilusório do que o ato de ler"

Ricardo Piglia





Era um velho encarquilhado, de muitas posses, que decidira, após um sonho perturbador, livrar-se dos livros. Começou pela própria biblioteca: lotou o carro com os volumes de seu apartamento na cidade e seguiu para o campo, onde estava a casa que abrigava sua biblioteca. No amanhecer do terceiro dia, com a ajuda de dois empregados, ergueu uma fogueira e lá queimou papel até a madrugada.

Entretanto, os sonhos voltaram ainda mais opressivos. Por vezes sonhava com memórias reais, de sua juventude, ainda estudante, formando sua biblioteca com os parcos recursos de que dispunha. Na última semana de cada mês, com sua mochila e suas reservas financeiras mensais, percorria a cidade, andando atrás de livros, nas lojas de usados. No sonho tratava-se de um dia interminável, em que ele refazia o percurso centenas de vezes, e sempre que passava pelos mesmos lugares, novos livros surgiam, e sua mochila abarrotava-se e tornava-se cada vez maior, ao passo que ele diminuía e era, por fim, esmagado.

Tratou de comprar bibliotecas de velhas viúvas e jovens herdeiros, em tudo ateando fogo. Em seu esforço biblioclasta fez com que o mercado de raridades se valorizasse e desse modo gastou grande parte de sua fortuna comprando lotes e estoques inteiros, em tudo ateando fogo. Os negociantes tomavam-no como um colecionador excêntrico, de nada sabiam.

Perdia a razão progressivamente, para a história de sua lucidez restavam poucas linhas vazias. Sua consciência ardia como a fogueira no pátio, inexorável, e o conteúdo dos sonhos crescia em malícia e perdição.

Alguns meses depois do primeiro sonho, diante da fogueira, abriu um volume prestes a ser queimado. Chamou-lhe a atenção a capa verde e as letras douradas no frontispício. Abriu numa página qualquer, ao acaso, e leu o breve relato de uma família queimada viva dentro de uma cabana de palha, de onde saíram os gritos que acordaram o narrador daquela história, um velho professor que procurara conforto e descanso para si e seus livros naquela aldeia afastada. No fim do relato, recorda-se do dia que ensinara as primeiras palavras em latim ao filho de seus vizinhos. Um aluno promissor, transformado em cinzas junto com seus pais e sua irmã recém-nascida.

Transtornado pela potencial queima daquela família, já mortalmente envolta pelas chamas uma vez, o velho mandou apagarem a fogueira e recolheu-se em seu quarto com o resto dos livros, de onde, segundo consta, nunca mais saiu.