sexta-feira, 30 de maio de 2025

O dizível e a ideia


1) No ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”, do livro O que é a filosofia?, Agamben está interessado naquilo que “quase” pode ser dito ou expresso, o ponto em que a “certeza” se anuncia, sem completar definitivamente seu ciclo. A ideia leva o dizível em direção a uma abstração com relação à língua. Essa língua, contudo, não diz respeito a um idioma específico, e sim à possibilidade de “todos os nomes e todas as línguas”. 

2) Como exemplo, Agamben recorre ao historiador Arnaldo Momigliano e sua ideia de que “o limite dos gregos era que eles não conheciam as línguas estrangeiras”, o que constitui, de resto, o limite de todo pensamento unilateral. Por conta disso, Agamben propõe a hipótese de que “o elemento linguístico próprio da ideia” não é simplesmente o “nome”, mas a tradução, “ou aquilo que é traduzível nele”. A tradução, portanto, surge como uma tarefa que é tanto ética quanto estética, atravessando as diferentes esferas que regulam a convivência dos seres em comunidade. 

3) E também a tradução se desenvolve sobre um paradoxo: entendemos o sentido geral de um texto – a trama de romances como Dom Quixote ou Moby Dick, por exemplo – quando lemos uma tradução; mas através da leitura também “entendemos” que nenhuma daquelas palavras foi escrita pelo autor. A consciência da “artificialidade” da tradução, no entanto, não impede o leitor de fruir o texto, de carregá-lo consigo para o resto da vida, costurando-o à própria subjetividade (como Jorge Luis Borges, que leu o Quixote primeiro em inglês, quando criança, e depois declarou que o original espanhol sempre lhe pareceu como uma tradução).

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Ainda Hölderlin


As reflexões de Agamben em sua crônica sobre Hölderlin podem ser posicionadas no contexto mais amplo de sua preocupação filosófica com a linguagem. Em vários momentos de sua obra – como, por exemplo, em Infância e história – Agamben coloca em primeiro plano a preocupação com a linguagem. Como a linguagem pode “existir”? Como ela pode ser acessada, o que significa dizer “eu falo”? Em O que é a filosofia?, a linguagem é abordada especialmente pelo viés da “experiência”, pela perspectiva de uma investigação do “ter-lugar” da linguagem, e é por essa razão que os dois livros recentes de Agamben são complementares: a crônica da vida de Hölderlin exemplifica e torna mais palpável o conjunto abstrato de proposições do livro sobre a filosofia.

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Para Agamben, a filosofia é um evento ontológico tornado possível pela linguagem – o “evento” diz respeito àquilo que é reconhecido coletivamente, enquanto o “ontológico” diz respeito à possibilidade do ser se reconhecer durante o uso da linguagem. Falar, escutar, escrever são atividades ambivalentes, operando na linha tênue que separa o único do múltiplo, o sujeito da comunidade. No primeiro ensaio do livro O que é a filosofia?, intitulado "Experimentum vocis", acompanhamos a descrição da estratégia de acoplamento da linguagem com a “metafísica ocidental”, o discurso que regula aquilo que pode ser imaginado para além da realidade. O indivíduo só se pode reconhecer através da linguagem, e é ela que articula a relação entre mundo e palavra, ontologia e lógica, “eu” e “outro”.

sábado, 10 de maio de 2025

Crônica de Hölderlin


1) Em A loucura de Hölderlin – crônica de uma vida habitante 1806-1843, Agamben retorna à literatura e propõe um estudo sobre o “poeta louco”. O primeiro ponto a salientar é que não se trata de uma reflexão que lida exclusivamente com Hölderlin, pelo contrário: seu percurso é contrastado com aqueles de Goethe e Napoleão, o que oferece uma sorte de pano de fundo histórico aos comentários de Agamben; além disso, os gêneros da “biografia” e da “crônica” são mobilizados (e questionados em seus limites) como ferramentas para uma abertura da história e da sucessão temporal; por fim, etiquetas classificatórias como “loucura” e “inspiração” recebem um tratamento de desnaturalização, ou desautomatização, dentro do qual o caso de Hölderlin é usado como exemplo de um radical atravessamento entre poesia e filosofia. 

2) O que dá consistência ao projeto é a dedicação verticalizada de Agamben aos textos de e sobre Hölderlin – poemas, biografias, relatórios médicos e cartas, dele e de terceiros. O livro é dividido em quatro partes principais, começando com um Limiar e um Prólogo, estendendo-se por uma Crônica (1806-1843) (a seção mais longa) e encerrando com um Epílogo. Mais uma vez a figura de Walter Benjamin, referência constante em todo o percurso intelectual de Agamben: Benjamin aparece logo no início de A loucura de Hölderlin para auxiliar Agamben na reflexão acerca da diferença entre “crônica” e “história crítica”. A dicotomia, contudo, é logo desfeita, pois Agamben argumenta que a escolha aparentemente “neutra” da crônica (expor fatos e eventos dentro de uma estrutura cronológica) já pressupõe uma tomada de posição, um escrutínio, um projeto.

3) Partindo de Benjamin, Agamben chega a uma ambivalência que guiará seu livro até o fim: “crônica” e “história” são gêneros diversos, mas complementares, com procedimentos que se fortalecem mutuamente através do contraste. “O cronista não inventa nada”, escreve Agamben, e, no entanto, “não tem necessidade de verificar a autenticidade de suas fontes”, às quais o historiador não pode, ao contrário, “em nenhum caso, renunciar”. O “único documento” que interessa ao cronista “é a voz”, a sua e aquela da qual lhe ocorreu ouvir, por sua vez, “a aventura, triste ou alegre, a que se está referindo”. É essa “voz” que se busca recuperar no caso de Hölderlin, embora as “fontes” (cartas, biografias, registros notariais) estejam sempre presentes.

domingo, 4 de maio de 2025

Aquele que conduz


1) Nos anos da Segunda Guerra Mundial, quando Hermann Broch está escrevendo A morte de Virgílio, Gianfranco Contini está preparando sua edição das Rimas de Dante. A partir desse trabalho, Contini começa a desenvolver uma de suas principais ideias críticas: o contraste entre "plurilinguismo" e "monolinguismo" na literatura, algo que ele traduz como um contraste entre Dante e Petrarca, entre um movimento de criação no interior da língua que privilegia a transformação e um movimento de criação que privilegia a manutenção, ou ainda, a circunscrição léxica, sintática e rítmica. 

2) O romance de Broch, publicado em 1945 - seis anos antes da morte do autor -, é realizado sob o decisivo influxo de James Joyce e de seu Ulisses (mais plurilinguista que o Ulisses, só o Finnegans Wake, que é de 1939). A partir do romance de um irlandês que resgata um personagem grego, Broch - um austríaco - faz um romance que resgata um personagem latino, o poeta ocidental por excelência, Virgílio, aquele que - nas palavras de T. S. Eliot - torna possível o cânone, mesmo para aqueles que trabalham em uma língua que não parte da matriz latina virgiliana. 

3) É possível dizer que Virgílio não existiria para Broch sem a intervenção de Dante, sem a intervenção da Divina Comédia, que leva a Eneida adiante; é o próprio Broch quem insiste na relação, desde as epígrafes do romance: as duas primeiras da Eneida, a terceira e última da Divina Comédia (do Inferno, canto XXXIV, precisamente quando Dante fala de Virgílio: Lo duca ed io per quel cammino ascoso / Entrammo a ritornar nel chiaro mondo (o uso que Dante faz da palavra "Duca" é muito interessante: do latim "ducem", "dux", significa "aquele que conduz", através do baixo grego (ou bizantino) "doúka" ou "doúkas", "chefe militar de uma cidade ou província").