sexta-feira, 14 de junho de 2024

Do limbo


1) "Encontrei pela primeira vez o texto que uso como epígrafe", escreve Ben Lerner na seção de "Agradecimentos" do seu romance de 2014, 10:04, "no livro A comunidade que vem, de Giorgio Agamben, traduzido do italiano por Michael Hardt. É geralmente atribuído a Walter Benjamin". O texto da epígrafe de Lerner é o seguinte: "Os hassidim contam uma história que diz que no mundo por vir tudo será precisamente como é aqui. Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora só que um pouco diferente" (10:04, trad. Maira Parula, Rocco, 2018, p. 5).

2) Já no começo de seu livro A comunidade que vem, de 1990, na segunda seção, intitulada "Do limbo", Agamben fala das crianças a partir de Tomás de Aquino (e comento a partir das crianças por conta do trecho da epígrafe de Lerner que fala sobre o sono do filho, algo que será importante ao longo do romance): Agamben comenta que o Doctor Angelicus do século XIII postulou que a pena das crianças não batizadas no limbo não poderia ser a mesma pena daqueles que sofrem no inferno - não será uma pena aflitiva, e sim uma pena privativa, ou seja, uma privação da visão de Deus (uma carenza, escreve Agamben, uma "carência", "falta" ou "vazio" que se expande infinitamente ao longo da eternidade).

3) Essas crianças sem batismo estão suspensas, congeladas em uma ambivalência (um momento específico como 10:04?): come lettere rimaste senza destinatario, escreve Agamben ("cartas sem destinatário"), questi risorti sono rimasti senza destino (eles estão "sem destino"). beati come gli eletti, né disperati come i dannati, essi sono carichi di una letizia per sempre inesitabile: nem eleitos, nem condenados, estão carregados de uma alegria que não acaba, que não se esgota (em termos mais literais, que não pode ser vendida). Um comentário sobre a palavra risorti, usada por Agamben para se referir às crianças no limbo: tem relação não apenas com os "ressuscitados", mas guarda também um contato etimológico com a ideia daqueles que dependem de certa jurisdição, ou que procuram refúgio ou asilo (ressort, ressortum, resortire).

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