segunda-feira, 24 de junho de 2024

Angelus McFly



1) No final do seu romance 10:04, Ben Lerner retorna ao começo e explica o texto que estava na abertura, na epígrafe - uma espécie de performance hermenêutica que reitera o ponto principal do livro: a ideia de que o sentido nunca se oferece completamente e, nas ocasiões em que se oferece (mesmo que de forma provisória e incompleta), o faz sempre retrospectivamente ("entender" é um jogo com o tempo: estar no futuro que se transformou em presente e, dessa posição impossível, resgatar do passado todos os "futuros possíveis", todas as projeções e tentativas que foram planejadas/esboçadas, promovendo uma comparação com esse futuro que se transformou em presente). Ao reconstruir rapidamente a genealogia da epígrafe (história encontrada em um livro de Agamben, geralmente atribuída a Walter Benjamin), Lerner força o leitor a uma releitura da epígrafe e, por que não, do romance todo. 

2) Lerner, evidentemente, não dá a informação completa - ele se limita a colocar em circulação essas duas referências, Agamben e Benjamin, omitindo outros dois nomes mencionados por Agamben em A comunidade que vem: Benjamin ouviu uma "parábola sobre o reino messiânico" de Gershom Scholem, contou para Ernst Bloch e este incorporou a história ao seu livro Spuren ("vestígios", "traços", "pistas"), de 1930. Mais uma vez a cronologia é embaralhada e a própria manifestação de um exemplo (uma história sobre a criação discursiva de um mundo possível) carrega em si uma sorte de versão resumida do argumento: o passado é aquilo que acontece quando narramos, na posição impossível do presente, os vários futuros outrora imaginados.

3) "Tudo será como agora, só que um pouco diferente": Lerner usa a frase final da história que está na epígrafe ao longo de todo o romance, voltando à fonte (Walter Benjamin - embora não seja exatamente uma "volta", já que sabemos apenas no final ("Agradecimentos") que Benjamin está na epígrafe, mesmo que não-nomeado) no momento em que cita o Angelus Novus de Klee das teses sobre o conceito de história - imagem que é aproximada, por Lerner, em seu romance, do personagem Marty McFly do filme De volta para o futuro (o anjo impelido para a frente, pelos ventos do progresso, de Benjamin, se transforma, no romance de Lerner, em uma figura do cinema, em algo que diz respeito diretamente à trajetória do narrador, a um filme da infância, etc).

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Do limbo


1) "Encontrei pela primeira vez o texto que uso como epígrafe", escreve Ben Lerner na seção de "Agradecimentos" do seu romance de 2014, 10:04, "no livro A comunidade que vem, de Giorgio Agamben, traduzido do italiano por Michael Hardt. É geralmente atribuído a Walter Benjamin". O texto da epígrafe de Lerner é o seguinte: "Os hassidim contam uma história que diz que no mundo por vir tudo será precisamente como é aqui. Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora só que um pouco diferente" (10:04, trad. Maira Parula, Rocco, 2018, p. 5).

2) Já no começo de seu livro A comunidade que vem, de 1990, na segunda seção, intitulada "Do limbo", Agamben fala das crianças a partir de Tomás de Aquino (e comento a partir das crianças por conta do trecho da epígrafe de Lerner que fala sobre o sono do filho, algo que será importante ao longo do romance): Agamben comenta que o Doctor Angelicus do século XIII postulou que a pena das crianças não batizadas no limbo não poderia ser a mesma pena daqueles que sofrem no inferno - não será uma pena aflitiva, e sim uma pena privativa, ou seja, uma privação da visão de Deus (uma carenza, escreve Agamben, uma "carência", "falta" ou "vazio" que se expande infinitamente ao longo da eternidade).

3) Essas crianças sem batismo estão suspensas, congeladas em uma ambivalência (um momento específico como 10:04?): come lettere rimaste senza destinatario, escreve Agamben ("cartas sem destinatário"), questi risorti sono rimasti senza destino (eles estão "sem destino"). beati come gli eletti, né disperati come i dannati, essi sono carichi di una letizia per sempre inesitabile: nem eleitos, nem condenados, estão carregados de uma alegria que não acaba, que não se esgota (em termos mais literais, que não pode ser vendida). Um comentário sobre a palavra risorti, usada por Agamben para se referir às crianças no limbo: tem relação não apenas com os "ressuscitados", mas guarda também um contato etimológico com a ideia daqueles que dependem de certa jurisdição, ou que procuram refúgio ou asilo (ressort, ressortum, resortire).

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Ratos e vermes



Ainda em Crepúsculo dos ídolos, de Nietzsche, e nas notas do tradutor Paulo César de Souza, chama a atenção a recorrência de certos animais: na seção final do livro, "O que devo aos antigos", Nietzsche fala de Christian August Lobeck (1781 - 1860), filólogo clássico alemão, que, "com a venerável segurança de um verme que sempre viveu entre os livros, penetrou nesse mundo de estados misteriosos e se convenceu de que era científico, sendo leviano e pueril ad nauseam" (p. 104-105). Nas notas, o tradutor informa que Nietzsche "alude à expressão Bücherwurm ('verme de livros', 'traça'), que os alemães empregam também para designar os viciados em ler ou colecionar livros" (p. 129, n. 153).
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Já no prólogo do livro, contudo, existe a aparição importante de um animal ou, ao menos, de uma metáfora que se sustenta sobre a imagem de um animal: Nietzsche escreve: "Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas - que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos - para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se..." (p. 7-8). Nas notas, o tradutor informa que a palavra "aliciador" é, no original, Rattenfänger, "apanhador de ratos": "Nietzsche se refere ao flautista de Hamelin (Rattenfänger von Hameln, em alemão), personagem de uma conhecida fábula medieval. Com exceção dos tradutores de língua inglesa e do italiano, que usaram pied piper e incantatore, os demais verteram literalmente a expressão. Nietzsche também a usa em Além do bem e do mal, seções 205 e 295, e A gaia ciência, seção 340" (p. 112, n. 4).

terça-feira, 4 de junho de 2024

Bom-mocismo


Crepúsculo dos ídolos foi o segundo dos cinco pequenos livros que Nietzsche escreveu em 1888, seu último ano de vida mental lúcida. Das suas dez seções, a última é a melhor: "O que devo aos antigos", uma mescla de comentários autobiográficos e análise de certos textos dos "antigos" (Salústio, Horácio, Tucídides). As notas do tradutor Paulo César de Souza (na edição da Companhia das Letras) deixam a experiência de leitura ainda melhor: quando Nietzsche fala que sempre buscou uma seriedade romana no estilo, "de aere perennius", a nota informa que o trecho em latim ("mais duradouro que o bronze") vem de uma ode de Horácio, um verso que diz "Ergui um monumento mais duradouro que o bronze", "uma das citações favoritas de Nietzsche", escreve o tradutor, que a usa tanto em Humano, demasiado humano quanto em Aurora (p. 128, n. 143).

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Em alguns momentos, o tradutor brasileiro faz com que a leitura da edição brasileira seja também, simultaneamente, a leitura de várias outras traduções: na abertura das notas ao final do livro, o tradutor informa que consultou outras oito versões de Crepúsculo dos ídolos - uma portuguesa, uma brasileira, uma espanhola, uma italiana, uma francesa, uma estadunidense e duas inglesas. Por conta disso, algumas notas apresentam também as soluções dadas nessas outras oito versões: ao traduzir Biedermännerei como "bom-mocismo", o tradutor informa que as soluções alheias (na ordem) foram as seguintes: "as ingenuidades", "lengalenga dos bons homens", "la mojigatería", "l'atteggiamento benpensante", "la lourde honnêteté", "the Philistine moralism", "the philistinism", "the smugness" (p. 129, n. 151).