domingo, 22 de março de 2020

Berta Isla

1) Em algum momento Javier Marías deve ter pensado a respeito do foco narrativo de seu novo romance - talvez já tivesse o ponto de partida (na Espanha, uma mulher casa com um homem que se torna espião do Serviço Secreto britânico), mas ainda não havia definido quem sustentaria a trama, ele ou ela (o título final escolhido para o romance, Berta Isla, apresenta todo esse conflito já resolvido, mostrando antes mesmo do romance começar que se trata de uma escolha que esconde um hemisfério inteiro da trama).

Naqueles dias e semanas de espera, me senti em meio a uma densa névoa, fazendo conjecturas, alternando o otimismo com o maior pessimismo, pensando que, de fato, tudo ainda podia ser: que Tomás fosse ele, fosse o que era; ou que Tomás tivesse mentido para mim desde o início e levasse uma vida tão diferente e secreta que tinha de ocultá-la inclusive de mim.
(Javier Marías, Berta Isla, trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2020, p. 207)

2) O romance todo é uma variação dessa "densa névoa" que Berta evoca no trecho acima. Caso fosse um romance de espionagem tradicional (gênero amplo e confortável ao qual Marías faz contínua e irônica referência - ele depende da lei do gênero para que sua estratégia de esvaziamento e expansão possa funcionar), acompanharíamos o espião e não sua esposa (suas esperas, suas dúvidas, suas dificuldades com duas crianças pequenas e assim por diante).
3) De certo ponto de vista, o romance de Marías é uma sorte de máquina de suspensão e cancelamento da expectativa, um dispositivo que alimenta e frustra o jogo de suspensão da incredulidade da literatura: assim como Berta, estamos diante da mentira, da ficção, da possibilidade de acreditar ou não acreditar - seu marido é, ao mesmo tempo, um personagem e a própria literatura; a dinâmica entre Berta e o marido é a dinâmica do leitor (e do escritor) diante da literatura: sei que é mentira mas, ainda assim, persisto.

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