sábado, 6 de julho de 2019

Terceira pessoa

1) Releio uma passagem do terceiro tomo dos diários de Piglia, Los diarios de Emilio Renzi: é uma anotação de 03 de novembro de 1980, o narrador está preparando aulas para um grupo de estudos - aulas sobre Wittgenstein e a questão da linguagem. Só é possível narrar a própria vida, a própria experiência, na terceira pessoa, escreve Renzi-Piglia, comentando Wittgenstein e seu par "falar/calar" e também resgatando Brecht (outra leitura que o acompanha, referência de aulas, convivência constante - a lição de Brecht, escreve ele, viver em terceira pessoa - Los diarios de Emilio Renzi - Un dia en la vida, Barcelona, Anagrama, 2017, p. 131).
2) É possível pensar naquilo que escreve Agamben sobre o testemunho - o terceiro que observa - em O que resta de Auschwitz, em um percurso que vai de Benveniste (o caráter móvel das posições subjetivas mediadas pelos pronomes) até Fernando Pessoa e a dinâmica dos heterônimos. Fredric Jameson, por exemplo, em seu Brecht e a questão do método, escreve: "a representação em terceira pessoa, a citação de expressões de sentimento e emoção de uma personagem, é o resultado de uma ausência radical do eu (self) ou, ao menos, um acordo com uma compreensão de que o que chamamos 'eu' é em si um objeto da consciência, e não nossa própria consciência" (trad. Maria Sílvia Betti, Cosac, 2013, p. 84).
3) Javier Cercas, nas páginas finais de seu livro de 2017, O rei das sombras, descreve o procedimento de escrita que usou para fazer o romance que agora se encerra: "para escrever um livro sobre Manuel Mena eu deveria me desdobrar: tinha de contar por um lado uma história, a história de Manuel Mena, e contá-la como um historiador a contaria, com desapego e distância e aferrando-se à verdade, como se eu não fosse quem eu sou, mas sim uma outra pessoa; e, por outro lado, devia contar não uma história, mas sim a história de uma história, ou seja, a história de como e por que acabei contando a história de Manuel Mena embora não quisesse contá-la nem assumi-la" (trad. Bernardo Ajzenberg, Biblioteca Azul, 2018, p. 262-263).


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