segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Zero K

1) Motivos kafkianos no romance de Don DeLillo, Zero K: a questão da filiação e da herança. O narrador é Jeffrey Lockhart, homem sem atividade definida que segue o pai – riquíssimo investidor – pelos meandros de um projeto científico de conservação e armazenagem de corpos humanos pela criogenia. Por trás do verniz futurista, há uma constante preocupação com o olhar, a aprovação e o aval paternos. “Este emprego faria de mim o Filho”, pensa Jeffrey em dado momento. “Quando é que um homem se transforma em pai?”, reflete ele mais à frente. Um romance sobre algo tão incerto e abstrato quanto o futuro precisa de algo palpável em que se ancorar, algo que diz respeito à experiência humana compartilhada em qualquer tempo e espaço, daí o uso da filiação, da sobrevivência do sujeito através de seus descendentes.
2) Outro tema de Kafka central para DeLillo é a transformação, a metamorfose. A metamorfose em Zero K diz respeito à sobrevivência dos corpos para além da morte pela via da criogenia – uma vida póstuma que se dá em um ambiente controlado, em cápsulas hermeticamente fechadas, sendo uma delas especialmente esculpida para receber o cérebro, que é retirado junto com outros órgãos. “Morrer humano, renascer como androide isométrico”, escreve DeLillo. A metamorfose em Kafka não envolve apenas o inseto. Diz respeito também às várias oscilações possíveis entre humano e animal, entre humano e algo que está além ou aquém do humano. Josef K., de O processo, é assassinado “como um cão”, escreve Kafka.
3) O narrador de DeLillo flutua entre a descrição, o estupor, a repulsa e o fascínio pela transformação. Zero K é uma exploração daquele Unheimliche de Freud – o estranho, o inquietante que irrompe do familiar, o androide isométrico que olha com os olhos do pai, simultaneamente abstrato e concreto.  Walter Benjamin cunhou uma fórmula para explorar esse fascínio por aquilo que escapa do humano e que, ao mesmo tempo, faz o humano: “sex appeal do inorgânico”. A fórmula de Benjamin abarca uma constelação de temas, do crânio descarnado como alegoria barroca até o fetichismo da mercadoria tal como Marx define n’O capital. Em comum, essa mescla de fascínio e repulsa pelo inanimado – Benjamin dá como exemplo a moda. Para DeLillo o sex appeal do inorgânico não está apenas na visão do corpo humano como manequim ou androide, está também no dinheiro. Assim como em Cosmópolis, Zero K vibra com o gozo advindo da riqueza, do choque entre o fluxo abstrato das ações e dos investimentos e o resultado palpável do mundo dos super-ricos. 

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