segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Autoridade e escuta

Daniel Paul Schreber, 1842-1911
1) Para Freud, toda transferência gera uma contra-transferência - e ambas devem ser utilizadas para a criação de uma cena analítica propícia à revelação (uma cena que permita a inter-dependência entre aquele que fala e aquele que escuta). Assim foi no caso da amizade de Freud com Fliess, e também de Freud com Jung ou com Adler, e todas essas cenas de transferência e contra-transferência tiveram o conflito e a ruptura como conclusão. O que estava em jogo era o questionamento de uma figura de autoridade, que jamais poderia encaixar perfeitamente com a figura daquele que escuta ou que precisa do discurso do outro (o conflito nasce da impossibilidade de Freud, Fliess, Jung ou Adler de ocuparem simultaneamente a posição de autoridade e de escuta). 
2) A sobreposição das duas posições, autoridade e escuta - ou atividade e passividade -, pode gerar problemas, como mostram as Memórias de um doente dos nervos de Schreber (o livro, surgido em 1903, teria sido apresentado a Freud justamente por Jung, que também escreveu um ensaio de interpretação - assim como tantos depois deles, desde Canetti até Roberto Calasso e Slavoj Zizek). A posição única de Schreber (um paranoico que toma a palavra de forma lúcida para registrar seu delírio) é reforçada pelo fato de que sua doença é uma espécie de reflexo ou reconstrução de uma posição de poder, pois é sua nomeação para um cargo de extremo prestígio que desencadeia os sintomas mais severos (esse duplo posicionamento, do juiz que ficcionaliza uma posição subalterna, é encenado em parte também por Salvatore Satta em O dia do juízo. O caso Schreber também funcionará como uma espécie de catalisador da articulação entre paranoia e homoafetividade que perseguia Freud desde o início de sua amizade com Fliess.
3) Carlo Ginzburg escreve que retirou de Auerbach a lição de "ler lentamente", aplicando-a a textos não-literários, mais especificamente os relatórios sobre os interrogatórios da Inquisição. Nesse texto que é uma espécie de resumo de sua trajetória, Ginzburg fala da "possibilidade de decifrar nos documentos inquisitoriais não apenas as superposições dos juízes, mas também (e isso era muito menos esperado) as vozes, expressões de uma cultura irredutivelmente diferente, dos réus". E mais: Ginzburg pensava na feitiçaria como "instrumento elementar da luta de classe". Mas no caso dos "andarilhos do bem", afirma Ginzburg, o caso foi um pouco diferente: durante um período de cinquenta anos, é possível acompanhar, como "em câmera lenta", escreve Ginzburg, a progressiva mescla do discurso do juiz com o discurso do camponês interrogado. O discurso dos andarilhos "era, para os inquisidores, incompreensível", e é "essa falta de comunicação que faz aflorar um estrato de crenças profundas e ocultas: um culto extático, centrado na fertilidade, que ainda era vivíssimo entre o século XVI e o seguinte, entre camponeses e camponesas numa região como o Friul, situada nos confins norte-orientais da Itália" ("Feiticeiras e xamãs", O fio e os rastros, tradução de Rosa Freire d'Aguiar e Eduardo Brandão, Companhia das Letras, 2007, p. 294-310).    

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