O ofício da caminhada é mágico - colocar um pé diante do outro, desde a primeira luz da manhã até o anoitecer, mirando sempre adiante. Os hebreus rodearam a Terra Prometida durante quarenta anos, como se a caminhada fosse necessária para abrir a mente - eles literalmente andaram em círculos, um ano depois do outro, desde a primeira luz da manhã até o anoitecer. Walter Benjamin, como tantos jovens alemães da época, participava daqueles grupos que, entre outras coisas, organizavam longas caminhadas pela floresta. Walser, Sebald, Bruce Chatwin. The way back, de Peter Weir. A caminhada da fuga e da vergonha que Céline organiza em De castelo em castelo. As marcas inerentes a todo exercício de movimentação, mas uma movimentação intensiva, exaustiva. Eu não sei quantas pinturas Van Gogh fez de sapatos, mas sei que o que está em jogo na imagem não é a representação do objeto. Talvez o que apareça no objeto-sapato de Van Gogh seja uma possibilidade de memória, uma possibilidade de jogo diante da morte, do vazio, do nada. Isso porque o sapato surrado guarda a forma do pé de um morto, de um corpo que já é pó, e a pintura de Van Gogh - que é tudo que nos resta - guarda a forma de uma forma vazia, faz uma segunda ficção de uma presença que era ausente desde o princípio, desde quando ainda existia o objeto-fantasma.
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A caminhada de Martin Heidegger e René Char pela região de Le Thor, na França, onde o primeiro dava seus seminários. "Olho a foto de René Char ao lado de Heidegger", escreve Milan Kundera em um dos ensaios de Une rencontre (Gallimard, 2009), "um celebrado como membro da resistência contra a ocupação alemã. O outro denegrido por causa das simpatias que teve, num certo momento de sua vida, pelo nazismo nascente. A foto data dos anos do pós-guerra. Nós os vemos de costas; com um boné na cabeça, um grande, o outro pequeno, eles caminham pelo campo. Gosto muito dessa foto". A foto foi tirada por Roger Munier, aluno de Heidegger, em algum ponto entre 1966 e 1969.
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