1) Os romances de Ian McEwan, em geral, costumam apresentar uma sorte de camada metaficcional, que serve ao autor/narrador como oportunidade para a discussão "ensaística" ou "crítica" do fazer literário. Em Lições, seu último romance, de 2022, essa camada é oferecida pela personagem Alissa, esposa do protagonista Roland, que o abandona - deixando com ele o bebê do casal, Lawrence - para seguir seu projeto de se tornar uma grande escritora (algo que se realiza: a carreira de Alissa se desenvolve e ganha corpo ao longo do romance de McEwan, sempre pela perspectiva distanciada de Roland - o marido abandonado que é, ao mesmo tempo, leitor).
2) Esse conjunto de fatos torna possível a McEwan fazer essa mistura peculiar - um marido abandonado deve dar conta de seus afetos conflitantes para melhor (ou pior) ler os romances da mulher que o abandonou. Ele lê os romances e busca neles ecos da vida passada, da vida compartilhada, do casamento no período prévio ao abandono - é sempre, portanto, uma leitura viciada, comprometida, tendenciosa (como é, grosso modo, toda leitura: o exemplo extremo de McEwan leva em direção à validade da tese geral do comprometimento de toda leitura).
3) "Passados cinco curtos anos, os livros e prêmios na Alemanha e em todo o mundo se acumularam", escreve o narrador sobre a carreira de Alissa, e continua: "Ela reescreveu e ressuscitou um dos romances que Roland havia datilografado e sido rejeitado pelos editores de Londres. (...) Não havia nada, material ou emocional, que ela não fosse capaz de descrever de maneira vívida. E, contudo, apesar de toda a intensidade do tempo que tinham passado juntos (...) nada estava na sua escrita, nem disfarçado ou deslocado. A experiência comum dos dois fora erradicada com um trator de sua paisagem criativa, incluindo o sumiço dela" (McEwan, Lições, trad. Jorio Dauster, Cia das Letras, 2022, p. 332-333).
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