Sabemos da insistência de Roberto Calasso em sua leitura de Karl Kraus, apresentada em vários pontos de sua obra. Dois dos ensaios de Os 49 degraus são quase que inteiramente dedicados a Kraus, "Da opinião" e "A guerra perpétua"; no primeiro, Calasso afirma que Kraus antecipa a "dialética do Iluminismo de Adorno" com o aforismo: O progresso faz porta-moedas com couro humano, acrescentando que "Kraus jamais se interessou por descrever essa dialética" e "se temos razão para ser gratos a Adorno por tê-lo feito, reconheçamos juntos que as implicações das metáforas de Kraus continuam a multiplicar-se bastante além do ponto em que a engenhosa explicitação de Adorno começa a rodar no vazio" (trad. Nilson Moulin, Cia das Letras, 1997, p. 59). Calasso parece dizer que, se Adorno peca pelo excesso, Kraus peca pela falta - e essa falta é o que garante a germinação de sua obra no futuro.
Embora a comparação entre Adorno e Kraus por parte de Calasso seja breve e se encerre no ponto apresentado acima, é possível ressaltar outra deriva: tanto em seus aforismos quanto em sua longeva revista Die Fackel, Kraus retornou inúmeras vezes à questão da tipografia, do signo marcado na página em branco, da materialidade mínima da escrita (revista "onde aparecem", escreve Calasso, "ensaios memoráveis sobre a vírgula, o apóstrofo, o sujeito e o predicado, a rima, os erros de imprensa", p. 70). Esse pano de fundo pode ser evocado para uma releitura de um dos ensaios mais "atípicos" de Notas de Literatura I, de Adorno, intitulado justamente "Sinais de pontuação" (de resto, o próprio Adorno cita Kraus no ensaio, ainda que rapidamente).
Existe uma "sensibilidade artística" em Kraus (e é ele quem usa a expressão várias vezes em seus aforismos) que atinge não só Calasso e Adorno, mas tantos outros, especialmente Canetti (que nomeia a partir de Kraus um dos volumes de suas memórias - Die Fackel im Ohr) e Kafka (a cantora Josefina é Karl Kraus). Em seus aforismos, Kraus fala da "balança de precisão" de sua "sensibilidade artística", que recusa toda palavra muito leve ou muito pesada, inadequada, sutilmente fora de esquadro: "devemos escrever sempre como se escrevêssemos pela primeira e pela última vez" (Ditos e contraditos, trad. Renato Zwick, Arquipélago, 2019, p. 78-79).
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