terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Ciocchini, 4

“Hunting guanacoes in Patagonia”; from the Illustrated London News, 1869
Assim como cada fragmento ensaístico de Ciocchini remete à grande peça que ele organiza, nomeia e publica – sem, contudo, estabelecer uma hierarquia de sentido entre as variadas peças –, também o atlas poético de Saint-Exupéry responde ao mesmo desejo de des-hierarquização da percepção do espaço: “O ser humano que se sabe passageiro, itinerante, parece ser o único que tem o sentido de sua habitação na terra”, escreve Ciocchini na frase de abertura do fragmento “O ser itinerante”, e continua: “Distância e carência outorgam sentido aos alimentos, e fazem florescer uma memória que devolve a realidade vestida de presença”. “Nas extensões desertas”, continua Ciocchini, “a Patagônia, o Saara, Saint-Exupéry se volta a uma memória profunda da infância”. Porque a presença do ser humano “quer indagar as extensões mais estranhas, entrar no coração do mistério, ser uma presença viva no planeta, ainda que nos rincões mais desolados; e tem o poder de levar a intimidade ao mais vasto, ao mais insensível”.

O atlas poético de Saint-Exupéry, conforme capturado na ensaística de Héctor Ciocchini, faz da visão contemporânea da Patagônia um resgate também do Saara, do contexto colonialista francês de inícios do século XX e, consequentemente, da dimensão “profunda da infância”, como aponta Ciocchini. “O ser itinerante adquirirá na noite a visão de um planeta deserto”, escreve ele, e “quanto mais distante está de toda presença humana, sua visão do homem adquirirá mais sentido. E, perdidos irremediavelmente no deserto, as leis humanas adquirirão sua formulação mais adequada”. E mais adiante completa: “A natureza em Saint-Exupéry culmina no homem; este sempre é um milagre infinito desse incessante esforço por chegar à superfície de uma verdade”, pois “a natureza da verdade humana é uma busca”. 

A “busca” em Saint-Exupéry, resgatada por Ciocchini como signo mitológico, ou seja, como indício da criação de uma “mitologia contemporânea”, se refrata em duas potências: uma busca pelo arcaico, pelos tempos imemoriais que ficam acessíveis através do olhar distanciado do aviador (o tema da atualização do “voo noturno”, como exposto anteriormente), e uma busca pela infância, pela sensação primordial do “estar no mundo”. Essas duas versões da busca ganham ressonância também na já mencionada dialética entre o instrumento e seu objeto, entre o avião e a terra, que coexistem a partir de um sistema tenso de relações – é da terra que sai o avião e é a ela que ele retorna, sem com isso remover a constante consciência de que a terra também puxa o avião para si. Nesse sentido, a morte, que ocorre quando a terra tem sucesso em puxar o avião para si (ou seja, o momento em que o objeto absorve o instrumento que dele se ocupa), é tanto uma reivindicação da experiência do retorno ao arcaico quanto uma lembrança enviesada desse momento primitivo da experiência, que em Saint-Exupéry é nomeado como “infância”.

Podemos apontar, finalmente, para a complexa configuração desse atlas poético de Saint-Exupéry tal como dissecado por Ciocchini: ele se apresenta fragmentado em quatro compartimentos interligados, dois deles que dizem respeito à geografia particular do aviador (a união da Patagônia com o Saara, em linhas gerais - o que faz pensar no esforço de Warburg de aproximar Atenas e Oraibi; ou o esforço de Bruce Chatwin em torno da Patagônia), dois deles que dizem respeito à imagem particular do tempo que daí emerge (a infância como experiência primitiva do mundo e, mais profundamente, o exercício poético como acesso à consciência primitiva – ou primeva – do “estar no mundo”). 

Nesse ponto, Ciocchini e Saint-Exupéry se misturam na análise que estou propondo aqui, pois o procedimento de análise do ensaísta termina por espelhar os conflitos do artista, e ambos aproveitam certa faceta estrangeira (nômade ou “itinerante”, para usar um termo-chave para Ciocchini) de suas experiências para plasmar uma leitura de mundo diversa. É, portanto, essa heterogeneidade que está por trás da ideia de atlas (a heterogeneidade do pesquisador latino-americano em Londres e do aviador francês no sul argentino). Além disso, tal heterogeneidade se encaminha em direção a uma dinâmica descontínua de percepção do tempo e da geografia, dinâmica essa que deve ser retida e cultivada em um exercício de contaminação também do presente e de suas linhas de força. 

2 comentários:

  1. bom dia,
    nunca tinha ouvido falar do nome deste ensaísta, hector ciocchini. onde consigo suas obras?

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    1. Só existe em espanhol e só foi editado na Argentina. "Temas de crítica y estilo", um livro de 1960, foi relançado recentemente pela editora 17 grises.

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