terça-feira, 29 de julho de 2014

Guia de Berlim

Nabokov em Berlim, 1923
1) Mesmo antes de começar o conto, Nabokov já cria uma expectativa: "apesar de sua aparência simples, esse guia é uma de minhas mais intrincadas composições". O leitor já vai armado, se preparando para uma aparência enganosa - aquela que diz respeito à "simplicidade" da composição. Prepare-se para colocar em prática uma leitura participativa, que prolifera interpretações diante da simplicidade (está dado o modelo de Fogo pálido). O conto é dividido em cinco breves seções: 1. Os canos; 2. O bonde; 3. Trabalho; 4. Éden; e 5. O botequim.
2) O conto é o registro de uma conversa entre o narrador e seu amigo de sempre de bebedeira - e se passando em 1925, pode-se muito bem pensar em Joseph Roth (ver "Beberrões e narradores"). Existe, portanto, essa linearidade, o narrador que vai aos poucos contando ao seu amigo por onde passou em Berlim, o que viu. Mas a "intrincada composição" começa a surgir quando Nabokov mistura nessa percepção sobre a geografia também uma percepção sobre o tempo - Berlim não é apenas a cidade que vemos e vivemos hoje, diz o narrador, indiretamente, mas todas as suas versões anteriores, que outros viveram, e suas versões futuras, que outros viverão. O guia de Nabokov, portanto, é uma peça ficcional que articula simultaneamente três níveis: a) o estilo, a prosa requintada que vai ganhando força à medida que o narrador se embriaga; b) a geografia da cidade compartilhada, e o mapa particular do narrador, seu "guia"; c) a sobreposição da temporalidade heterogênea do espaço urbano, o ontem, o hoje e o amanhã combinados nessa progressão narrativa "simples". 
3) "Voltando para casa", escreve Nabokov, "há de compilar uma descrição das ruas da Berlim de antanho. Todas as coisas, até as menores ninharias, serão valiosas e significativas", "tudo será enobrecido e legitimado pela idade". E continua: "Acho que aí reside o sentido da criação literária: retratar objetos triviais tal como se refletirão nos espelhos benévolos dos tempos futuros; encontrar nos objetos a nosso redor a ternura perfumada que só a posteridade saberá discernir e apreciar nos dias longínquos em que cada insignificância de nossa vida cotidiana se tornará estranha e festiva: a época em que um homem envergando o mais ordinário paletó de hoje estará pronto para participar de um elegante baile a fantasia". (Nabokov, "Guia de Berlim", Detalhes de um Pôr-do-sol, trad. Jorio Dauster, Cia. das Letras, 2002, p. 85-93).

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Os demônios de Loudun

1) Estamos, ao mesmo tempo, no despertar do século XVII - 1634, o ano do assassinato do padre Grandier, o "herói" do livro de Huxley - e no auge do século XX, 1952, o ano de publicação de Os demônios de Loudun. Huxley jamais perde de vista esse salto temporal, que ele encara não como um obstáculo, mas como um exercício - sempre questionando seu ponto de vista, sempre se perguntando será que não estou vendo o século XVII com as lentes do século XX? ou ainda como posso, ainda que indiretamente e de forma precária, resgatar esse olhar que o século XVII lançava a si próprio? (Lembrando que, para Auerbach, essa capacidade de "trocar as lentes" é o maior legado deixado por Vico).   
Em meio à cristandade da época medieval e do início da Idade Moderna, a situação dos feiticeiros e seus clientes era quase que exatamente igual à dos judeus sob o jugo de Hitler, dos capitalistas durante o governo de Stálin, dos comunistas e seus simpatizantes nos Estados Unidos (p. 151). No auge da caça às bruxas no século XVI, a vida social em determinadas regiões da Alemanha deve ter sido muito semelhante àquela sob o domínio nazista ou num país recentemente dominado pelos comunistas (p. 156). Aldous Huxley, Os demônios de Loudun. Trad. Sylvia Taborda. São Paulo: Globo, 2014.
2) Se, como dizia Barthes, a língua é fascista porque obriga a dizer, mais um elo se estabelece a partir desse exercício de Huxley de ligar o século XVII ao XX - a histeria das freiras se contagiou pelo discurso, do exorcista para a prioresa e desta para as outras: "a prioresa recontava essas aventuras noturnas às demais freiras; as histórias nada perdiam na narrativa e, dentro em pouco, duas outras jovens estavam também tendo visões de clérigos importunos e ouvindo uma voz que sussurrava as mais indelicadas propostas em seus ouvidos" (p. 133). Se Didi-Huberman fala de uma "invenção da histeria" - com Charcot estimulando as poses e as palavras das mulheres, investindo tanto na visualidade quanto na textualidade -, no livro de Huxley está em jogo uma "invenção da possessão".
3) O contexto francês e a forte carga sexual em Os demônios de Loudun (imaginária nos delírios das freiras, real na vida de Grandier, padre metido a Don Juan que era) me fizeram pensar em Rabelais e, consequentemente, em Bakhtin. Grandier é rabelaisiano, com seus excessos, sua sensualidade, sua eloquência: "Domingo após domingo", escreve Huxley, Grandier, "no púlpito da igreja de Saint-Pierre", "fazia suas famosas imitações de Jeremias e Ezequiel, de Demóstenes, de Savonarola, mesmo de Rabelais - pois ele era tão bom na zombaria quanto na justa indignação" (p. 26). Uma passagem de Bakhtin evoca essa liberdade de Grandier:
A tradição antiga permitia o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e esse riso era um renascimento feliz. Essas brincadeiras de tipo carnavalesco referiam-se à vida material e corporal. A tradição do risus paschalis persistia ainda no século XVI, isto é, enquanto vivia Rabelais. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Hucitec, 2010, p. 68.
A história de Grandier, portanto, é também a história da progressiva dissolução dessa tradição carnavalesca - "as tradições do realismo grotesco se empobrecem e se restringem mais ainda nos diálogos do século XVII", escreve Bakhtin mais adiante (p. 90), e vai piorando, numa "total degenerescência da franqueza da praça pública" (p. 91). O caso Grandier, tão bem esmiuçado por Huxley, com sua morte na fogueira, condensa as múltiplas estratégias postas em movimento para abafar e neutralizar esse modo "carnavalesco" (no sentido dado por Bakhtin) de conceber o mundo e a linguagem.        

terça-feira, 15 de julho de 2014

O Corredor

Roberto Rossellini, Paisà, 1946
1) Assim como existe um fio narrativo bastante aparente unindo Marcel Schwob e Giorgio Vasari (a partir das Vidas imaginárias), esse fio narrativo que se organiza a partir da vida de Paolo Uccello, existe um fio histórico subterrâneo que liga Vasari a Hitler e Mussolini, e que liga todos eles a uma espécie de reconfiguração política do mapa da cidade. A reconfiguração do mapa da cidade em 1938 é análoga àquela original, de 1565, quando Vasari foi contratado para projetar e coordenar as obras de um longo corredor que pudesse facilitar a vida do novo dirigente de Florença, Cosimo I de' Medici.
2) O Corredor Vasariano servia para que o dirigente pudesse ir da casa ao trabalho sem ter contato com o povo. Passa por cima de uma ponte, contorna uma torre medieval, invade o átrio de uma igreja, se mistura ao tecido urbano para reaparecer em seguida, signo de ostentação e de conspiração. Nada mais absurdo e megalomaníaco do que construir um corredor suspenso sobre a cidade para evitar a massa. Mussolini, em 1938, reinscreve o gesto de Cosimo no contexto do fascismo, mantendo essa tensa convivência entre exposição e segredo. Porque o Corredor serve tanto para esconder o soberano quanto para atestar permanentemente seu poder e sua exceção, atestar para o povo que ele está acima das leis de organização social.
3) Para a visita de Hitler, Mussolini ordena a reconstrução de um trecho do Corredor, substituindo as janelas pequenas por janelas amplas, que permitam a observação panorâmica do rio e da cidade - é provável que a magnificência do Corredor tenha contribuído para que o Ponte Vecchio tenha sido a única ponte de Florença não destruída pelos nazistas durante a retirada. Depois de Vasari e Cosimo, Hitler e Mussolini, o Corredor é apropriado uma terceira vez, agora por Roberto Rossellini, em 1946, com Paisà: o Corredor serve não para o passeio triunfante dos ditadores, mas para a ação clandestina dos resistentes, simbolizando a ligação instável entre o lado liberado do rio e aquele ainda ocupado pelos nazistas - um mesmo espaço geográfico, um mesmo percurso, contém em si duas narrativas irreconciliáveis, mas sobrepostas (a destruição das pontes de Florença e a quase-destruição do Corredor lembram os quadros de Van Gogh destruídos em bombardeios; lembram os afrescos de Uccello em Santa Maria Novella, em péssimo estado de conservação, que Vasari descreve como contendo "um número infinito" de animais, "aquáticos, terrestres e voadores").   

segunda-feira, 14 de julho de 2014

3 notas sobre o deslocamento

Como esboçado aqui, trata-se de pensar a dimensão retórica do deslocamento geográfico - como a escritura tenta dar conta, em sua dinâmica, em sua concatenação progressiva, do próprio percurso que narra (como se fosse a segunda camada desse percurso, um suplemento feito de linguagem para um percurso geográfico que, no fim das contas, também não passa de abstração).
1) A descida ao Sul em Borges - lugar de suspensão do tempo, de contato entre o passado distante e o instante imediato, em que certas palavras já não servem e outras devem ser ressignificadas; o mesmo em Sciascia, em direção ao Sul da Sicília - também o cuidado de um novo idioma, que deve ser aprendido em termos de sobrevivência (se em Borges a comunicação dificultosa leva ao duelo, à faca, em Sciascia deve-se estar atento também aos silêncios, àquilo que não se pode comentar ou dizer da máfia).
2) Salvatore Satta, O dia do Juízo - um livro sobre os caminhos da Sardenha, sobre os fantasmas que, segundo Satta, rondam tais caminhos, sobre o progressivo abandono da vida nesses caminhos, dada a exaustão provocada em seus habitantes por esse espaço inóspito (exaustão progressiva que Satta procura emular com seu próprio estilo). Em seu ensaio sobre o romance de Satta, George Steiner fala de seu próprio desejo de percorrer esses caminhos (apesar do medo que sentia dessa geografia conhecida pela violência), de como de fato viajou a Nuoro atrás dos caminhos de Satta.
3) Essa rota antiga dos homens perversos de Satta (retomando o título de Girard) é reencenada em As nuvens, de Juan José Saer: uma caravana de loucos atravessa o país, e é o próprio discurso da razão, da técnica, da civilização que os move adiante (Weiss, o psiquiatra holandês), e é esse mesmo discurso - aparentemente coeso, inquebrantável - que vai aos poucos sendo minado pelo discurso dos loucos, pelo discurso dos bandoleiros (o cacique Josesito, educado pelos jesuítas, mas que desertou).
 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Traidor, herói

1) Acredito que mais do que "O sul", o modelo borgiano por excelência para a obra de Piglia - especialmente para o recente O caminho de Ida - seja "O tema do traidor e do herói", conto que Borges publica primeiro na revista Sur e, em 1944, em livro. Borges conta a história de um traidor que é transformado em herói em nome de uma "causa revolucionária", marcando, contudo, essa transformação de um extremo a outro com uma série de referências literárias (é a partir dessas referências - Júlio César e Macbeth de Shakespeare - que a farsa é lida e decifrada muito tempo depois).
2) Traição e heroísmo como elementos complementares, como variações possíveis dentro de um mesmo evento (a maleabilidade dos signos, das referências, das explicações, das verdades). A adaptação que Bertolucci fez do conto de Borges, em 1970, com o filme Strategia del ragno, ressalta o componente político que é evidenciado também por Piglia (sobretudo no que diz respeito ao contexto totalitário latino-americano), mas o faz a partir do fascismo italiano, o que nos permite resgatar Gramsci, Sciascia, Pirandello, entre outros, a partir do breve esquema: 
a) Borges anuncia logo no início do conto que a história poderia ocorrer em qualquer país "oprimido e tenaz", em qualquer época; Bertolucci escolhe a Itália fascista de 1936, ano chave do fascismo;
b) 1936 é também o ano de morte de Pirandello, grande artífice das farsas, escritor que Leonardo Sciascia escolheu como mestre;
c) Sciascia que, como Piglia, investiria em uma poética marcada pelo jogo e pela ironia, pelo gosto de evocar precisamente essa "maleabilidade dos signos" políticos presente no conto de Borges.
3) Bertolucci faz não apenas traidor e herói confluírem para o mesmo indivíduo, mas a própria concepção da mistura, que no conto de Borges é creditada a outro (Kilpatrick é o traidor/herói, mas é Nolan quem arquiteta a mistura; em Bertolucci não, é Athos Magnani o responsável pelo plano de sua própria morte e de sua própria impostura póstuma). Resta ainda equacionar a entrada de Conrad nessa história (O agente secreto, arqui-texto de O caminho de Ida), mas Thomas Munk, o terrorista, surge como uma mescla de Enrico IV (o personagem de Pirandello que finge ser louco para incutir loucura naqueles que o cercam) e de Kilpatrick, dedicado a arquitetar um plano que acarretaria tanto sua queda (louco, terrorista) quanto sua redenção (profeta, visionário). 

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Norte-Sul

Gino Severini, Nord-Sud, 1913
1) Em O caminho de Ida, Piglia toma o deslocamento geográfico de maneira mais difusa (como já comentei um pouco aqui) - ele diz respeito ao eixo Norte-Sul (como em Blanco Nocturno), ou seja, de Buenos Aires até o campus universitário na Costa Leste dos Estados Unidos, mas também e principalmente a uma multiplicidade de marcações cartográficas muito significativas (uma espécie de triangulação que organiza a trajetória do terrorista: as florestas de Montana, onde se isolou; a Califórnia, onde trabalhou e lidou com extremistas; e Harvard, onde estudou).
2) Ainda que o modelo para essa dinâmica seja o paradigmático conto de Borges, "O sul" (especialmente em Blanco Nocturno), há uma carga política revestindo esse deslocamento geográfico, algo que extrapola tal modelo - ou que deve ser buscado em outros modelos caros a Piglia, especialmente Brecht (a epígrafe de Dinheiro queimado) e Gramsci. Há inclusive certa aproximação entre Gramsci, o intelectual visionário perseguido e encarcerado pelo fascismo (Piglia usa essa imagem em O último leitor), e Thomas Munk, o terrorista de O caminho de Ida, igualmente visionário e encarcerado, ambos profundamente comprometidos com visões e posturas revolucionárias diante do contexto que viviam. 
3) Mas há um terceiro elemento, que é precisamente o tratamento retórico tanto do deslocamento geográfico quanto da carga política - algo que também acontece em Leonardo Sciascia, por exemplo. Gramsci, Sciascia, Piglia e Borges, cada um a seu modo, reservaram muita energia para o tema do deslocamento geográfico, sobretudo em sua articulação Norte-Sul - a questão meridional, a violência (os gauchos, a máfia), as fronteiras, os idiomas próprios (daí a importância do tratamento retórico, da percepção de como a linguagem se transforma na dimensão de influência desse deslocamento geográfico - os detetives tanto de Piglia quanto de Sciascia precisam, antes de tudo, ajustar o ouvido para perceber como aquilo que está sendo dito difere daquilo que não foi dito, que não pode ser dito).