sexta-feira, 20 de julho de 2012

Napoleão e o romance

Napoleão é a imagem perfeita do alcance da ficção na dita vida real, uma imagem da mescla mais delirante entre realidade e fantasia. Napoleão é um enigma que permanece, justamente porque sua vida e tudo aquilo que fez formam uma espécie de nó na garganta da verossimilhança. Não há campo do conhecimento que não tenha sido tocado por sua megalomania - da engenharia à biblioteconomia. O que dizer da literatura:
Assim como o surgimento do Quixote e de Robinson no campo da literatura ocidental está em relação direta com uma situação histórica definida - para o primeiro, as aberrações sociais e espirituais causadas por uma ordem teocrática retrógrada; para o segundo, a revolução burguesa de Cromwell e as perspectivas por ela abertas ao sonho individual -, também a trajetória do Bastardo no século da História do romance é propriamente inconcebível sem a escalada de Napoleão. O aventureiro sem nascimento nem fortuna, que, num piscar de olhos, coroa-se a si próprio, instala seus irmãos em todos os tronos da Europa por ele desapropriados e forja-se um império em uma recentíssima república de que é incipiente cidadão, pertence ao romance por todas as fibras de sua personalidade: Napoleão é romance de ponta a ponta, um romance que se faz à medida que influencia os acontecimentos da história. É o Bastardo encarnado, o renegado perfeito que deixa o mundo em polvorosa ao realizar sem escrúpulos nem remorsos o que seus semelhantes mal ousam sonhar. Torna-se então, para o Bastardo contemporâneo, o inspirador, o mestre, o ídolo que não esmaga, mas soergue seus fiéis; e, para o romance moderno, o gênio libertador cuja ação mesma, no limiar entre a ação e o sonho, recua como nunca antes os limites da imaginação.
Marthe Robert. Romance das origens, origens do romance. Tradução de André Telles. Cosac Naify, 2007, p. 179.  
Napoleão é a mão que derruba a primeira peça de uma infinita fila de peças de dominó. Balzac, Stendhal, Hitler e Elias Canetti. Roberto Bolaño, Stanley Kubrick, Thomas Mann e Freud. Toda uma linhagem do pensamento moderno que nasce diretamente de Napoleão e de sua inextricável cópula entre ficção e história.

2 comentários:

  1. Esse livro da Marthe Robert é um dos meus favoritos de teoria literária. Li com um prazer imenso.
    Fazem parte dos meus objetos de desejo os livros dela sobre Kafka: 'Introduction à la lecture de Kafka', 'Kafka' e 'Seul, comme Franz Kafka'. Nos três, ela interpreta a obra dele, sempre à luz da psicanálise. Já leu algum deles?
    [Sempre ótimos seus textos, a cada um deles renovo prazeres muitas vezes esquecidos.]

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    1. Eu também gosto muito desse livro. Sempre me impressiono com o fato de ela não ter o mínimo receio de marcar uma posição - para ela, o romance foi e sempre será uma oscilação entre a Criança Perdida e o Bastardo.
      Tenho muita curiosidade com os outros livros dela, ler uma análise extensa sobre o Kafka. Deve ser bem interessante.

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