Cozarinsky, num fragmento de Vodu urbano que se chama Cheap Thrills, usa como epígrafe uma receita de Elias Canetti:
Fazer um inventário de tudo o que nos deixa nostálgicos... sem tentar explicar ou relacionar, sem conexões, apenas aquelas coisas que nos provocam nostalgia. No outro dia, fazer o inventário de tudo aquilo que nos dá medo.
Cozarinsky, no fragmento que se segue à citação, escolhe o inventário da nostalgia ou o inventário do medo? Não fica claro. Talvez seja uma mistura dos dois, uma mistura de medo e nostalgia. Ele narra algo bastante identificável: sua experiência com um cinema de Buenos Aires que não existe mais (nostalgia?). Há, contudo, algo mais, uma espécie de educação dos sentidos - aquilo que o muito jovem Cozarinsky observa acontecer nas últimas fileiras da sala de cinema (medo?):
Talvez não haja nenhum registro da primeira vez em que a mão de um velho alisou os joelhos de um soldado, mas na época em que comecei a frequentar o Armonia ele já acomodava um grande número de adolescentes que, com os olhos fixos nos peitos de Kim Novak, expeliam pelas braguilhas abertas um segmento de sua viscosa vida interior nos dedos de vizinhos especialistas.
Se esse trecho talvez anuncie uma excitação da descoberta (pela ênfase da descrição), o trecho final é bem mais sombrio - está bem mais ao lado do medo que da nostalgia. Narra a violação e o assassinato de um menino, dentro do banheiro do cinema:
O Armonia fechara as portas pouco tempo depois de um inquérito policial sobre a morte de um tal Ricardito Ordónez, de nove anos, violado e asfixiado em uma latrina por um operário de construção das províncias do norte, que, ganhando a confiança do menino com ofertas generosas de amendoins cobertos de chocolate, atraíra-o para o banheiro.
Após introduzir toda a extensão de seu desejo entre as nádegas rígidas e assustadas de Ricardito, sufocou seus lamentos desordenados com o braço direito tatuado, convertendo assim um gesto de paixão numa involuntária proeza de necrofilia.
A violência das memórias que Cozarinsky resgata nesse fragmento é análoga à violência que Canetti cultiva em seus escritos - seja pela via da nostalgia, seja pela via do medo, o olhar de Canetti está sempre pousado na crueldade, no que há de mais obscuro no comportamento humano. Uma crueldade e um tênue desespero diante das capacidades de autodestruição do homem - uma lição que Canetti e Cozarinsky retiraram, em grande medida, de Kafka. Certamente não é por acaso o fato dos dois escritores terem dedicado livros a Kafka - Canetti com O outro processo e Cozarinsky com um curioso projeto de montagem de textos alheios, denominado Galaxia Kafka.
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