quinta-feira, 10 de maio de 2012

A inocência é uma invenção dos modernos

O internato foi destruído. Não existe mais. Quando soube, não pude esconder minha satisfação. Me parecia imortal. Até mesmo a majestosa escadaria de mármore e as camas circundadas de gazes, que anunciavam candor e morte, foram demolidos. Disse a Frédérique, a ela podia contar, como a destruição daquele prédio me deu un parfait contentement (assim está escrito em uma carta do tarô). Também disse a Frédérique que talvez tenham sido nossos pensamentos, ou as emanações que habitam a idade da inocência, a destruí-lo. Ela dizia que a inocência é uma invenção dos modernos.

Fleur Jaeggy. I beati anni del castigo
Milano: Adelphi, 1989, p. 79-80.
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1) A dimensão do viver-junto é, também, a dimensão do afeto: a proximidade dos corpos exige, como contrapartida, o desenvolvimento dos afetos - a direta e inexorável influência de um corpo sobre o outro. A narradora de Fleur Jaeggy, depois de anos e anos vendo outras meninas chegarem e partirem, finalmente se apaixona por Frédérique - mais velha, misteriosa, como se já tivesse vivido toda sua vida por antecipação. No Jakob von Gunten de Walser, Jakob também se apaixona - muitos de seus dias são preenchidos pela observação dos movimentos de Klaus, tão viril, decidido, desprovido de dúvidas (seu oposto, em suma).
2) Walser, no entanto, não parece nutrir qualquer interesse sobre o futuro de seu instituto - ou o futuro das pessoas do passado, dos prédios do passado, das imagens do passado. Talvez venha daí toda a estranheza de livros como Doutor Pasavento, de Vila-Matas, ou I beati anni del castigo, de Fleur Jaeggy - ou de O estádio de Wimbledon, de Daniele Del Giudice. Tentam rastrear aquilo que, desde o início, foi pensado como improvisado, fugidio, feito de ar - e fazem, ainda por cima, de forma ficcional, como se dissolvessem um punhado de areia dentro do oceano.
3) Quando Sebald decide escrever sobre Walser, quando esse Sebald tão dependente dos rastros, da documentalidade e do confronto com os escombros do passado decide escrever sobre Walser, deve necessariamente encontrar um ponto de apoio - e essa referência é seu avô, que morreu no mesmo ano de Walser, 1956. Não é curioso que nesse ano, 1956, Ernst Jünger decida finalmente publicar sua tradução dos Pensamentos de Antoine de Rivarol (1753 - 1801), um projeto que Jünger preparava desde a II Guerra, essa guerra que ele registrou com seu corpo e seus diários, guerra cuja história e destruição foram tão importantes para Sebald, sua vida e sua poética? A leitura de Jünger de seu mundo, em 1956, passava pelo resgate de uma figura obscura do passado e, principalmente, passava por uma ética da citação, da tradução e da apropriação de um outro - sua resposta ao caos era uma resposta anacrônica, uma sorte de necromancia através do texto, um texto que mesclava ensaio, citação, glosa e cotejo, um híbrido.
  

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