Freud escreveu muito sobre o desejo do sujeito de atingir a morte - a própria morte, sem dúvida, como um desejo de voltar ao estágio anterior à vida, mas, principalmente, o desejo de ver a morte no outro, o desejo de contemplar um corpo alheio inerte, frio. Na perspectiva do Elias Canetti de Massa e poder, por exemplo, esse é o desejo por excelência do soberano - e o salário dessa ambição é sempre a paranoia. Em Criminosos por sentimento de culpa, Freud fala que a culpa precede o crime - o sujeito mata para ser punido, porque deseja, desde antes do crime, a punição. Em Dostoiévski e o parricídio, entra em cena a irracionalidade dos impulsos, além da culpa pelo parricídio e pelo incesto. Em Moisés e o monoteísmo o cenário ganha ampliação, pois Freud ressalta a importância dos impulsos assassinos (e suas respectivas punições) para a formação das instituições sociais. Ricardo Piglia condensa essas reflexões de Freud em uma frase que escreve em seu livro Nome falso: "Não foi por acaso que Freud escreveu: a distorção de um texto é semelhante a um assassinato: o difícil não é cometer o crime, mas esconder o rastro". A primeira parte da frase que Piglia atribui a Freud provavelmente é apócrifa - contudo, dá a dimensão necessária para se entender o nexo entre o crime, o desejo de punição e a inexorabilidade dos rastros que ficam para trás. É também essa faceta de Freud que está presente na construção do "paradigma indiciário" de Carlo Ginzburg - que não deixa de ser, por sua vez, uma versão da teoria de Walter Benjamin sobre a citação (a citação - como o rastro - funcionando como uma ruptura da hierarquia na transmissibilidade cultural, porque sua aparição "estranhada" é uma carga revolucionária na leitura da história). Talvez um pouco disso tudo esteja também presente no corpo da cigana morta, que Kusniewicz coloca no centro de seu romance, e talvez seja possível pensar a ausência de luto e justiça com relação a esse corpo a partir dessa conjuntura moderna que se arma um pouco antes e um pouco depois da I Guerra Mundial.
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