segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arte da ignorância


Em muitos trabalhos de Agamben, a tensão entre saber e não-saber foi muitas vezes aproximada da tensão entre potência e ato, ou seja, entre a possibilidade de fazer algo e a possibilidade de escolher não fazê-lo. 

Em Opus Dei, livro de 2012, glosando a interpretação latina dos Pais da Igreja da filosofia aristotélica (dentro do escopo mais amplo daquilo que denomina “arqueologia do ofício”, ou seja, uma investigação da matriz conceitual da ontologia moderna a partir das traduções de termos-chave do grego para o latim), Agamben escreve: “Como Aristóteles não se cansa de repetir contra os megáricos, tem verdadeiramente uma potência aquele que pode tanto colocá-la quanto não colocá-la em ato”; completando mais adiante com um exemplo: “O Bartleby de Melville, ou seja, por definição um homem que tem a potência de escrever, mas não pode exercê-la, é a perfeita das aporias da ética aristotélica” (p. 100, 103).

Assim como o saber precisa dar conta do não-saber – a partir de uma “arte da ignorância” que exercite a noção de que as certezas são historicamente situadas e, por isso, oscilantes – a potência precisa dar conta da própria suspensão ou esvaziamento, do reconhecimento de certa não-continuidade em sua vigência. Ainda em Opus Dei, Agamben escreve que a “relação com a privação”, ou seja, com a possibilidade de não-fazer (ou não-saber), “é essencial para Aristóteles, porque é só através dela que a potência pode existir como tal, independentemente de seu passar ao ato” (p. 99).

terça-feira, 24 de junho de 2025

Partes das partes


De onde vem essa lógica rigorosa em Poe, de que fala Todorov? Está por todos os lados, ocupando, com variadas intensidades, camadas diversas da tradição - já está, sem dúvida, na fundação, na Eneida de Virgílio (e certamente está na falha da lógica rigorosa a angústia de Virgílio diante da morte: não poder completar a estrutura que levou a cabo). De Virgílio a Dante, sempre a lógica rigorosa, como escreve Panofsky em Arquitetura gótica e Escolástica (p. 26):

A Divina Comédia de Dante não só deve grande parte de seu conteúdo ao ideário escolástico, mas também sua forma conscientemente trinitária. Na Vita Nuova, o poeta chega a desviar-se de seu tema para analisar a sequência de ideias de todos os sonetos e canzioni, de maneira perfeitamente escolástica, como "partes" e "partes das partes".

Auerbach, em vários momentos da sua obra, insiste na dominância da lógica da separação de estilos: alto, médio e baixo, com categorias rígidas e fronteiras de pertencimento cada vez mais sutis; é o próprio Auerbach também quem enfatiza como o cristianismo rompe com essa lógica rigorosa, inaugurando um paradigma discursivo no qual o sublime está irremediavelmente costurado ao humilde e ao criatural, sem que isso redunde em uma substituição total e completa do paradigma da lógica rigorosa de separação dos estilos. 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

A lógica rigorosa


"Cada nível de organização do texto obedece a uma lógica rigorosa; além disso, esses níveis são estritamente coordenados entre si. Retenhamos um único exemplo: os contos fantásticos e 'sérios' são sempre contados na primeira pessoa, de preferência pela personagem principal, sem distância entre o narrador e sua história (as circunstâncias da narração aí desempenham um papel importante), como em 'O demônio de perversidade', 'O gato negro', 'William Wilson', etc. 

Por outro lado, os contos 'grotescos', como 'O rei peste', 'O diabo no campanário', 'Lionizing', 'Quatro bestas em uma', ou os contos de horror, como 'Hop-Frog' e 'A máscara da morte escarlate', são contados na terceira pessoa ou por um narrador testemunha, e não ator; os acontecimentos são distanciados, o tom é estilizado. Nenhuma sobreposição é possível" 

(Tzvetan Todorov, "Os limites de Edgar Allan Poe", Os gêneros do discurso, trad. Nícia Bonatti, Unesp, 2018, p. 239).

sábado, 7 de junho de 2025

Papa engrossada, mingau de aveia




"Em casa de uma família instruída, à mesa do chá, falava-se de literatura, de coisas como fantasia e fábula. E lamentava-se que tudo isso estivesse cada vez mais pobre e mais pálido entre nós. Eu lembrei-me de uma observação muito característica do falecido Píssemski, que dizia que o empobrecimento notado na literatura estava sobretudo relacionado com a multiplicação das estradas de ferro; na sua opinião, elas são muito úteis para o comércio, mas às belas-artes fazem mal.

'Hoje em dia, a pessoa viaja muito, mas à maior velocidade e sem problemas - dizia Píssemski -, e por isso não junta nenhuma impressão forte, e não há nada que olhar, nem tempo para isso, pois tudo passa voando pela janela. Daí, a sua experiência é pobre. Mas, antigamente, quando ias de Moscou a Kostromá de carruagem e saía-te um cocheiro canalha, e os outros passageiros eram todos uns insolentes, e o dono da hospedaria era um velhaco, e a cozinheira da casa era a imundície em pessoa - vê aí, então, quanta variedade havia para a tua contemplação. Com o coração já pra não aguentar mais nada, aí tu pescavas uma imundície qualquer na sopa e dizias umas poucas e boas à tal cozinheira, e ela, em resposta, vinha para cima de ti com dez vezes mais impropérios; tu, então, simplesmente não tinhas como escapar de impressões. E elas juntavam-se em ti numa nuvem grossa, que nem a papa engrossada a fogo lento; pois então, aí a escrita só podia sair-te encorpada, concentrada, também; hoje em dia, tudo isso é à moda ferroviária: pegas o teu prato, e sem perguntas; comes, mas não dá nem tempo de mastigares; din-din-din e fim de conversa; recomeças a viagem, e a única impressão que colhes é que o empregado da taberna te roubara no troco, mas já não tens tempo para uma boa troca de palavras fortes com ele' "(Leskov, Um pequeno engano e outras histórias, trad. Noé Polli, Ed. 34, 2024, p. 83-84)

*

"Sua prosa não tem primavera nem verão, não tem outono nem inverno, não é preta nem vermelha; ela escorre para o estômago feito mingau de aveia sem sal. Mas, como vocês não vivem mais como cervejeiros, defumadores, feirantes e ciganos, como têm medo do cajado do tempo e de seu próprio desespero, não têm mais o que dizer. 

A época em que louvavam a própria fome, em que os jovens escritores se insurgiam contra presidentes, aquela em que vocês faziam a revolução, essa época passou! Foi-se o tempo em que Hamsun vadiava por Nova York, em que Sillanpää não pôde ir buscar seu prêmio Nobel, porque ele, que vivia de fato, tinha sete filhos e nem sequer um único tostão no bolso do casaco para a viagem. E foi-se o tempo em que vocês cantavam seus versos ao som do alaúde. De um povo de poetas e pensadores fez-se um povo de segurados, de funcionários públicos e de membros do partido, uma paisagem de fracos, de homens sem nenhuma paixão carregando pastinhas. De um povo de entusiastas fez-se um povo de representantes comerciais!" 

(Thomas Bernhard, "Uma palavras aos jovens escritores", 18 de janeiro de 1957, Na pista da verdade: discursos, cartas, entrevistas e artigos, trad. Sergio Tellaroli, Todavia, 2015, p. 33)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sementes bárbaras


"Para Vico, a Idade Média representava o novo mergulho da humanidade no fresco elemento da fantasia, uma retomada da capacidade de imaginar, mitificar e simbolizar que é aquela dos bárbaros. Depois do excesso de reflexão que havia caracterizado a época do império romano, a humanidade se refez jovem, tinha abandonado a prosa e entre os novos bárbaros do norte retomou o poetizar homericamente. 

Na Silésia, nação de camponeses, assegurava solenemente Vico, todos nascem poetas. Vico não conhecia naturalmente nem o Beowulf, nem o Nibelungenlied, nem a Chanson de Roland, mas uma vaga ideia de cantares espanhóis e italianos bastava para que confirmasse suas intuições. Uma imagem bem diferente daquela barbárie supersticiosa, sem redenção fora da sobrevivência dos últimos restos clássicos, que é a intuição fundamental de Gibbon. 

A Europa moderna não era para Vico um renascimento do mundo antigo, segundo a concepção do Renascimento proposta por Gibbon, mas um desenvolvimento de sementes bárbaras."

(Arnaldo Momigliano, "Edward Gibbon fuori e dentro la cultura italiana", Sesto contributo alla storia degli studi classici e del mondo antico, 1980, p. 245-246)

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Hipérion



1) Para Agamben (ainda no ensaio dedicado ao “dizível e a ideia”), a “traduzibilidade” é o que garante a movimentação do pensamento através do tempo, pois está situada “no limiar que une e divide os dois planos da linguagem”, o semiótico e o semântico (o plano da materialidade e o plano do sentido). Por isso Walter Benjamin destacou a “relevância filosófica” da tradução, que Agamben desenvolve minuciosamente. 

2) A possibilidade de traduzir é, em grande medida, uma postura diante do mundo e diante do outro, do diferente, do distante (por isso o caso de Joseph Conrad é tão paradigmático para o século XX, despertando tantos comentários e reutilizações narrativas). Nessa perspectiva, a “traduzibilidade” faz parte da consciência que preciso ter de que minha língua não é o centro do mundo, ou a instância reguladora dos afetos e dos horizontes. Reconheço a limitação do meu mundo ao exercitar o desejo de traduzir aquilo que ainda não conheço.

3) É nesse ponto do traduzível que as reflexões de Agamben sobre Hölderlin e sobre a linguagem se encontram, apesar de vindas de contextos e publicações diversas: isso porque é a partir também da tradução que Hölderlin se situa diante do próprio tempo, da própria época; para além de uma contemporaneidade compulsória com certas figuras da mesma época (Hegel, Napoleão), Hölderlin estabelece, pela via da tradução, uma contemporaneidade não-contemporânea com a Antiguidade, especificamente com Píndaro e Sófocles.