segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Excessos


"O ponto comum que une Jorge Luis Borges a Manuel Puig é o fascínio pelos escombros da erudição na periferia do ocidente. (E também a opção ideológica pelo antiperonismo, mas essa é uma discussão que escapa às dimensões deste artigo.) No caso de Borges, fascínio pelo entulho da erudição de fundo europeu e, no caso de Puig, pelo entulho da produção cultural de fundo basicamente norte-americano e hispano-americano. 

Estou referindo-me a um traço sobressalente na crítica irônica e desdenhosa que a literatura dos dois faz à reflexão intelectual do latino-americano, sempre pontuada pelo gosto da novidade e pelo excesso de erudição, como já descobria Claude Lévi-Strauss ao chegar em 1934 a São Paulo. Nós, latino-americanos, temos mais leituras e leituras mais vastas do que os pesquisadores do chamado primeiro mundo, mas nossa erudição livresca tem pouco contato com os problemas imediatos da nação, apresentando-se como uma espécie de excesso inútil, semelhante ao da lantejoula, cujos escombros são a marca original dos textos de Borges e de Puig" (...)

"Manuel Puig é o primeiro grande autor latino-americano que trabalha com a forma de escombro derivada do excesso de excesso da indústria cultural estadunidense e argentina, ou seja, com o quase lixo – filmes ultrasentimentais, radionovelas, tangos e boleros. Trabalha com a superabundância da mais gratuita das erudições juvenis, que é a proporcionada pelos produtos de quinta categoria que nos são exportados ou, à semelhança deles, produzidos por aqui. Da conjunção das ficções fantasiosas do bibliotecário Jorge Luis Borges e dos excessos sobre o excesso do cinéfilo Manuel Puig é que foi surgindo, a partir dos anos 1980, uma nova geração de escritores latino-americanos, que na falta de outro nome chamaríamos de os mistificadores, cujo melhor exemplo na Argentina é Ricardo Piglia"

Silviano Santiago, "Manuel Puig: a atualidade do precursor", aqui.

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