2) O romance "não passa da exegese de uma carta autêntica de meu pai, datada de 5 de abril de 1942", afirma Kiš em entrevista de 1986 (Homo poeticus, p. 210). Cada frase e cada informação que o pai coloca na carta serve ao filho como disparador de um conjunto de cenas, descrições e desenvolvimentos (muito mais carregados de "imaginação" do que faz crer Kiš nas entrevistas, sempre enfatizando a dimensão "documental" como pano de fundo determinante). A carta, contudo, só é transcrita no final do romance - Kiš faz uso de uma série de estratégias para sua "exegese", oscilando o estilo de escrita em seções intituladas, por exemplo, "cenas de viagem", "notas de um louco" e "investigação criminal" (um ritmo de interrogatório semelhante àquele que Bolaño utilizará em contos como "Putas assassinas" e "Detetives").
3) No último parágrafo do romance - antes da transcrição da carta, que é apresentada em itálico -, que faz parte de uma das "notas de um louco", o pai fala em primeira pessoa e faz referência, finalmente, ao filho, o filho que décadas depois se ocupa de seus resíduos textuais: se nada mais sobreviver, escreve o pai já durante a guerra, talvez "minhas anotações e minhas cartas" possam perdurar como "vida materializada" ("patética vitória humana sobre o imenso, eterno e divino nada"). Talvez meu filho um dia publique minhas anotações e meu "herbário de plantas da Panônia", escreve o pai em sua última frase (e essa ênfase no herbário faz pensar em Rousseau, que tinha o mesmo interesse, como Sebald comenta em seu ensaio dedicado ao autor em Logis in einem Landhaus).
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