domingo, 15 de novembro de 2020

Dusklands / Portnoy


1) Na História da sexualidade, ao falar da "vontade de poder" (1976), Foucault descreve, comenta e problematiza a dimensão dos "dispositivos do poder", estratégias que geram discurso ao dar a impressão que o discurso é interditado (o aparente interdito é uma das ramificações do dispositivo em sua constante coerção do sujeito). Trata-se de uma dimensão inerente à própria linguagem e sua condição de permanente incompletude (já está no Fedro, reaparece na polêmica de Karl Kraus com a psicanálise - pensada como solução para um problema que seu próprio discurso cria - e mais recentemente nas várias reflexões de Peter Sloterdijk (No mesmo barco, Se a Europa despertar) sobre o discurso "democrático" do Ocidente que descrever, denuncia e cria o "terrorismo" de que é vítima).

2) O dispositivo atua a partir da ambiguidade do discurso, preservando e abolindo ao mesmo tempo (uma versão da Aufhebung hegeliana?). Publicado em 1969 (o mesmo ano da Arqueologia do saber de Foucault), Portnoy's Complaint, o romance de Philip Roth, é emblemático dessa dinâmica: o dispositivo que permite o discurso (a cena analítica) é o mesmo que impede sua resolução e garante sua disseminação virtualmente infinita (a cena da "cura" intensifica a "doença", dando novos significados e ressonâncias para algo que, inicialmente, era quase sem importância). O próprio "discurso-romance" é simultaneamente preservado e abolido, já que seu encerramento é, ao mesmo tempo, uma desistência e um reenvio ao início.

3) Em 1974, Coetzee publica seu primeiro romance, Dusklands, dividido em duas narrativas "independentes" (sendo esse efeito de dissociação uma das principais dimensões do dispositivo preservação-abolição no romance): "The Vietnam Project" e "The Narrative of Jacobus Coetzee". A primeira conta a história de um homem que trabalha em uma agência governamental dos EUA que coordena as estratégias de guerra psicológica no Vietnã; a segunda se passa no século XVIII e fala da incursão do Coetzee do título para caçar no interior do país (o romance é o trabalho intenso de Coetzee a partir de uma imersão nos arquivos e de sua própria exposição ao dispositivo discursivo colonial - pesquisando relatos de viajantes na África do Sul primeiro na biblioteca do British Museum, depois na biblioteca da University of Texas at Austin - onde lia também os manuscritos de Beckett).  

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