domingo, 22 de novembro de 2020

Se eu me esquecer


1) Como o romance faz para fazer sentido, como ele estabelece, a partir da articulação da sua forma, a plausibilidade de seu discurso e de sua possibilidade de fazer sentido? Ou melhor, como a composição formal do romance atua sobre a performance sempre renovada da leitura, enfatizando certos traços e sublimando outros? Um romance como Dusklands, de Coetzee (que comentei dias atrás), arma um complexo sistema de significação a partir de sua construção formal (para falar com Hayden White, o "conteúdo da sua forma" passa pelo registro dos eventos em uma determinada configuração deliberada; o conteúdo da forma, no caso do romance de Coetzee, é seu esforço de tornar manifesta a configuração formal).

2) Em vários momentos da sua obra Coetzee aparece como um leitor de Faulkner (como em Elizabeth Costello), na ficção, no ensaio e na mescla de ambos (como em Diário de um ano ruim). A divisão seca que Coetzee propõe entre as duas partes de Dusklands retoma aquela de The Wild Palms, de Faulkner (cada parte com 5 capítulos cada, a primeira sobre Harry e Charlotte, a gravidez, o aborto e a morte; a segunda sobre o prisioneiro que é levado para auxiliar os habitantes de uma região inundada pelo rio Mississippi, resgata uma mulher grávida, ela dá à luz e ele retorna à prisão). A forma do romance de Coetzee coloca já de antemão o caráter indireto da relação entre as partes (a guerra psicológica no Vietnã, a guerra colonial na África do Sul no século XVIII) e postula a necessidade de um esforço de conexão por parte do leitor (uma performance cognitiva potencialmente infinita).

3) É irônico que mesmo a história do título de Faulkner seja cindida: The Wild Palms foi publicado em 1939 com o título escolhido pelo editor da Random House. Faulkner não aprovou, preferia o título escolhido por ele, If I Forget Thee, Jerusalem (referência ao Salmo 137, verso 5: Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha direita da sua destreza). Desde a década de 1990 as edições do romance já incorporam os dois títulos (a relação entre os dois títulos é também produtiva e inacabada, como o próprio romance e a reconfiguração de Coetzee em Dusklands: o título bíblico, recorrente em Faulkner, diz respeito à dimensão arcaica da experiência, o misto de religiosidade e intransigência da vida no Sul; o título dos editores é uma demarcação clara do espaço geográfico e da experiência do sujeito diante do meio - a falta, a fome, a seca, a cheia, os ciclos da natureza, o nascimento/morte, o ciclo da vida, a morte inevitável, o caráter vão de todo esforço de mudança e assim por diante).      

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