sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Seis novos Estados

1) Em suas Memórias de um antissemita, Gregor von Rezzori fala de um mundo que é em parte aquele de Joseph Roth ou Freud, ou de escritores ainda posteriores, como Hermann Broch ("sou um filho de sonâmbulos", escreve von Rezzori quase no fim das Memórias - p. 369) e Döblin; mas como von Rezzori nasce em 1914, sua vivência do período entre-guerras é o da criança e do adolescente, soterrado pelos preconceitos que são passados de geração em geração em sua família. Von Rezzori cresce em mundo já dividido, mas que ainda celebra o passado - sua mentalidade em formação é colonizada pelo saudosismo e pela nostalgia de um período que ele não viveu diretamente, mas que o circunda de forma fantasmática (nas fotos, objetos, relatos repetitivos de familiares).
2) Mas tão forte quanto o período histórico vivido é a voz narrativa modelada para dar conta dos eventos - o narrador das Memórias é constante, vai e volta no tempo com humor, auto-ironia e profunda atenção aos detalhes. São incontáveis parentes, conhecidos, vizinhos, artistas que ele persegue para em seguida perder de vista:

"Ela já não mais vivia no mesmo mundo que elas, e as fronteiras de seis novos Estados as separavam, e logo ela também já não mais falava a mesma língua que elas, só acompanhava a vida daquelas pessoas amadas e cada vez mais distantes por meio da abstração das notícias que chegavam em cartas, que, no melhor dos casos, eram amparadas por fotografias, além de impressões gerais sobre as mudanças trazidas pelos novos tempos provindas de reportagens fotográficas em revistas ilustradas" (Gregor von Rezzori, Memórias de um antissemita, trad. Luis Krausz, todavia, 2018, p. 284).

3) O trecho acima, que dá conta da proliferação do Império depois da I Guerra Mundial, é interessante porque aproxima essa segmentação nacional e identitária de uma cultura de massas incipiente, que ocupará a tantos nesses mesmos anos (Benjamin, claro, mas também Warburg e Freud - como defende Jonathan Crary em Suspensões da percepção). Em primeiro lugar as cartas, por vezes acompanhadas de fotografias e, em um terceiro nível, recortes de revistas ilustradas. Forma-se aí o arquivo pessoal - feito de deslocamentos e traumas ao longo de gerações - que será central para a ficção de W. G. Sebald, por exemplo, que em todos os seus romances buscará rastrear esses resíduos - fotografias, recortes, diários, anotações, bilhetes, etc. 

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