terça-feira, 30 de outubro de 2018

Coetzee, Jesus

1) A princípio, A infância de Jesus, romance que Coetzee lança em 2013, surge como um enigma, ou mesmo uma estranheza. Comparado com o resto da obra - ao menos a obra mais conhecida e celebrada de Coetzee, Desonra ou Michael K. - o romance parece recusar a referencialidade histórica, dificulta a definição de seus temas ou propósitos (um livro como O mestre de Petersburgo, por exemplo, declara de forma nítida seus propósitos: revisitar um período muito específico da vida de Dostoiévski, dando conta dos fatos que teriam gerado a escrita de Os demônios).
2) Mas A infância de Jesus compartilha uma série de elementos com outros romances de Coetzee (e a aproximação ajuda a suavizar a estranheza do contato com o livro mais recente). Em primeiro lugar, chama a atenção como o narrador chama Simón (protagonista? acompanhante de "Jesus"?) de "ele", um "ele" que é ao mesmo tempo distanciado e próximo, compartilhando por vezes pontos de vista e sensações (um "ele" que já está na trilogia autobiográfica de Coetzee, Boyhood, Youth e Summertime). Parte do tom filosófico já está no Diário de um ano ruim; parte do cenário indistinto (futurista? distópico?) já está em À espera dos bárbaros; a aproximação verticalizada do destino e desenvolvimento de uma criança já está em Michael K, apenas com o signo invertido (de um lado a vítima, do outro, o "messias").
3) Se há uma referência literária a guiar a narrativa em A infância de Jesus ela certamente é Cervantes (como foi Dostoiévski no romance citado; como foi Daniel Defoe em Foe; como Dante em Age of Iron). O menino David (nunca fica clara sua associação com o "Jesus" do título) aprende a ler com Dom Quixote, e mais do que isso: usa o Quixote como modelo de imaginação e performance diante do mundo; usa a fissura entre palavra e imagem na sua edição do livro para mostrar seu próprio distanciamento do mundo e de suas regras (o trecho dos moinhos e dos gigantes: a imagem mostra o moinho, mas David sabe que é um gigante, pois é o que Cervantes diz). Além disso, todo o esforço de Simón para alfabetizar David evoca vivamente os esforços de Susan Barton para alfabetizar Sexta-Feira em Foe (e nos dois romances há o deslocamento pelo mar, a chegada em terra estrangeira e difícil convivência com as novas regras). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário