quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A questão do outro

1) Todorov, em seu livro sobre a "conquista da América", comenta extensivamente a relação tanto dos índios quanto dos invasores com aquilo que chama de "signos", orais ou escritores, materiais ou imaginários. Os maias escolhiam seus soberanos levando em consideração a capacidade de "interpretação" dos candidatos, ou seja, sua capacidade de resolução de enigmas vindos seja das estrelas, seja das palavras dos sábios ou da tradição (A conquista da América: a questão do outro, trad. Beatriz Perrone-Moisés, Martins Fontes, 2010, p. 109). Os partidários da relação entre os índios e o Paraíso (e com isso Adão e os personagens bíblicos) poderiam ter depreendido daí uma relação entre Montezuma e José (aquele que interpreta os sonhos do faraó) ou Daniel (aquele que interpreta o sonho de Nabucodonosor).  
2) A conexão entre personagens bíblicos e interpretação dos sonhos não pode menos que levar diretamente a Freud. O fato é que o próprio Freud era profundo conhecedor das narrativas de "descobrimento", além de ter acompanhado de perto o boom da arqueologia no século XIX (Schliemann, Troia, etc). Em sua "Contribuição à história do movimento psicanalítico" (1914), Freud escreve que é frequentemente comparado a Colombo (e Darwin, e Kepler), algo que nem recusa, nem abraça, mas que é pouco adiante aprofundado quando Freud cita um dito latino, lema de Paris: Fluctuat nec mergitur, "sacudida, não afundada" (o que faz pensar naquela outra divisa latina - Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo - usada por Freud precisamente na Interpretação dos sonhos). 
3) Colombo retorna à exposição de Freud poucos anos depois, 1916-1917, nas "Conferências introdutórias", agora de forma um pouco mais ampla e específica. A questão aí para Freud é a da autoridade e da nomeação (uma relação de termos que será explorada por Derrida, seja pela via de Freud, seja pela via de Benjamin), pois ele diz que Colombo não dá nome à América, mencionando também a preocupação de Alexandre por não ter um Homero para cantar seus feitos. A conclusão é clara: naquilo que Colombo falhou, Freud pretende triunfar, mantendo claramente a nomeação e a autoridade na circulação da psicanálise (aqui vale lembrar que Todorov também comenta extensivamente sobre a mania de nomeação de Colombo, às vezes nomeando o mesmo ponto geográfico duas vezes no mesmo dia - um porto que foi "Maria" e depois "São Nicolau", p. 39). 

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