domingo, 11 de dezembro de 2016

Esferas, livro e deserto

Joel-Peter Witkin
1) Na primeira das dez "Digressões" intercaladas aos capítulos de Esferas I - Bolhas, Peter Sloterdijk fala da "Transmissão de pensamentos". A mente isolada, "tesouro cheio de representações", cerne inexpugnável da subjetividade, argumenta Sloterdijk, é uma novidade em termos "paleopsicológicos", "uma recente penugem sobre maciças camadas de realidades psicológicas mais antigas" (a força imagética dessa metáfora, tão característica do estilo de Sloterdijk). A noção de que haveria um interior privado no qual o sujeito poderia fechar a porta atrás de si, escreve Sloterdijk, "não surge antes da primeira vaga individualista na Antiguidade". E, ainda assim, não conseguimos nos movimentar fora desse espaço da inviolabilidade do pensamento, por mais recente que seja.  
2) A culpa, segundo Sloterdijk, é da escrita: a escrita "é o que torna possível que indivíduos se retirem da sociedade para se completarem a si mesmos com as vozes dos autores: quem pode ler também pode ser só. Apenas a alfabetização permite a anacorese: o livro e o deserto estão ligados" (a obra de Jacques Derrida cintila sob a sugestão desse comentário: da Farmácia de Platão - os indivíduos que "se retiram" da sociedade; a relação entre leitura e solidão - até Mal de arquivo - completar o "si" com as "vozes dos autores"; a articulação livro e deserto, arquivo e vazio).
3) Além disso, a argumentação de Sloterdijk nessa digressão se aproxima das questões levantadas por Derrida na Gramatologia: a "transmissão de pensamento" de que fala Sloterdijk é um dos tantos nomes da metafísica da presença, na medida em que, culturalmente, o Ocidente tem a necessidade de manter seus "finados reis divinos" e "deuses", que "mantiveram em marcha a história do mundo como uma série de guerras entre esses grupos de possessão fundados na telepatia e na psicose da influência, mais bem conhecidos como 'culturas'". A transmissão de pensamento liga-se, como procedimento, forçosamente à presença de um iniciado, um mestre - um sistema hierarquizante de isolamento do sujeito, um modelo de dependência, contrário àquele da escrita, que forneceria uma fenomenologia do isolamento comunicativo/produtivo. É significativo, portanto, que Sloterdijk encerre a Digressão com uma menção a Freud e à cena analítica, dentro da qual o próprio Freud, segundo Sloterdijk, eram reativadas certas "funções paleopsicológicas" (Peter Sloterdijk, "Digressão 1: Transmissão de pensamentos", in: Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 240-243).

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