sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

15 de maio de 1525, de 1891



No final de Austerlitz, na última página do romance, Sebald dá a própria data de nascimento como data de morte de uma vítima de Hitler, Max Stern, Paris, 18.5.44. No seu livro de estreia, Nach der Natur, poema narrativo dividido em três partes, quando fala do pintor Mathias Grünewald, Sebald fala da batalha de Frankenhausen, que aconteceu no dia 15 de maio de 1525
e que, como tantos outros eventos da época, está retratada nessa que é a maior pintura a óleo do mundo, com mais de 120 metros de comprimento. Em Nach der Natur, Sebald fantasia acerca do momento em que Grünewald, que tinha o hábito de colocar o próprio rosto de forma mais ou menos disfarçada em vários dos personagens de seus quadros, o momento em que Grünewald toma conhecimento do massacre de camponeses ocorrido na batalha - segundo Sebald em seu poema, o dia em que Grünewald toma conhecimento do fato é justamente o dia 18 de maio, e Grünewald fica tão abalado que "durante semanas", escreve Sebald no poema, "usa um pano negro sobre o rosto". Em 18 de maio de 1525, Grünewald esconde o rosto que tantas vezes mostrou (e segue mostrando) em seus quadros.
Em Nach der Natur, Sebald faz de Grünewald alguém extremamente sensível, alguém que percebia no real algo que não pertencia diretamente ao real, mas que dele fazia parte de forma misteriosa, insondável - os corpos dos camponeses massacrados, por exemplo, são percebidos pelo Grünewald como ainda visíveis, perceptíveis. Os infernos estão abertos e em constante permutação com a vida na superfície, assim parece para Grünewald, segundo Sebald (também ele tão imbuído dessa sensibilidade para os espectros). Um pouco como Satanás e seu séquito em visita a Moscou, como um dia sonhou e realizou Mikhail Bulgákov
Satánas e seu séquito encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. Bulgákov levou quase dez anos para terminar o romance, ditando à mulher as últimas revisões semanas antes de morrer, em março de 1940. Bulgákov, que nasceu em 15 de maio de 1891, no dia da batalha de Frankenhausen, chegou a queimar uma versão inicial de O mestre e Margarida, mas a versão final sobreviveu e Bulgákov chegou a dar ao demônio em seu livro uma frase sucinta mas reveladora, que na Rússia se tornou proverbial: manuscritos não ardem. Quando morria Bulgákov, quando dava os últimos retoques em seu romance em 1940, do outro lado do mundo, em Buenos Aires, Bioy Casares finalizava também ele um livro, menor, mas que lida com temores e fantasias semelhantes.
Não é apenas o caso de Bulgákov e Bioy elaborarem fábulas acerca da irrealidade da realidade, e sim certa ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico (o demônio, os hologramas) quanto a insistência desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo. Talvez A invenção de Morel possa ser lido não como o relato da passagem do desconhecido ao conhecido, o relato da progressiva familiarização do Fugitivo com a ilha, mas o relato de alguém que transfigura a própria visão de mundo ao perceber a porosidade desse mundo diante daquilo que não se pode controlar, explicar (não seriam os rostos dos hologramas o próprio rosto do Fugitivo, à maneira de Grünewald, mesclando próprio e alheio no registro de sua arte?).  

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