quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Esferas, vida-morte

1) Já nas primeiras páginas de Esferas I Sloterdijk fala de Nietzsche e da Gaia ciência, referência recorrente ao longo de todo o livro. Nietzsche, "o magistral formulador daquelas verdades com as quais não se pode viver", escreve Sloterdijk, "mas que tampouco se pode pretender ignorar, para não ofender a probidade intelectual", "articulou conclusivamente o que o mundo em seu todo deve se tornar para os empreendedores modernos com base nessa percepção: 'uma porta abrindo-se para mil desertos, vazios e glaciais'. Viver na época moderna significa pagar o preço da ausência de camadas protetoras" (p. 25).
2) Poucas páginas adiante, Sloterdijk fala de Nietzsche como esse "Diógenes trágico", concluindo que "pode-se considerar a civilização técnica, sobretudo sua aceleração no século XX, como a tentativa de sufocar as questões levantadas pelos testemunhos cruciais de Nietzsche em um manto de conforto" (p. 28). O trecho todo é construído como um comentário de Sloterdijk ao fragmento 125 da Gaia ciência; a exposição decorrente, contudo, especialmente quando Sloterdijk comenta as várias mortes que são necessárias para assegurar a ficção da individualidade do sujeito sob a benção da razão instrumental, toda essa exposição de Sloterdijk, portanto, é um desdobramento de uma parte do fragmento 109 do mesmo livro de Nietzsche:
Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra "acaso". Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2001, p. 136).
A articulação entre o diagnóstico de Sloterdijk acerca do século XX - tentativa de sufocar as questões levantadas por Nietzsche - e a intuição do próprio Nietzsche acerca da coexistência entre morte e vida me fez pensar em Sebald e em seu percurso não como escritor, mas como crítico e pensador da literatura. 
3) Em 1973, Sebald termina sua tese de doutorado, O mito da destruição na obra de Alfred Döblin, que sai em livro em 1980. 

Na leitura muito particular de Sebald, Döblin surge como alguém ainda nostálgico do "manto de conforto" oferecido tanto pela nação quanto pela ideia de destruição total da nação, ou ainda a vida sob a expectativa messiânica de um evento, uma chegada revolucionária. Para Sebald, a fuga desse modelo - e, consequentemente, textos literários que podem ser associados ao projeto de Sloterdijk de rompimento do tal manto de conforto - está em Kafka e Beckett. Ao oferecer esses nomes como contrapontos ao trabalho de Döblin, Sebald cita uma frase de Molloy, o romance que Beckett publica em 1951: “viver é também se decompor”. Na tradução de Léo Schlafman:
É na tranquilidade da decomposição que me recordo desta longa emoção confusa que foi minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos julgará e com a mesma impertinência. Decompor também é viver, eu sei, eu sei, não me atormente, mas não estamos sempre presentes. (Samuel Beckett, Molloy, Nova Fronteira, 1988, p. 23)

Nenhum comentário:

Postar um comentário