quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As condessas

1) O sorriso da Condessa Tiepolo se mistura ao sorriso de Monalisa, escreve Sciascia em 1912+1 - Parecia-se com o sorriso da Gioconda o sorriso da condessa Tiepolo?, pergunta Sciascia retoricamente, e cita extensamente a descrição de um jornalista em 1913, durante o processo: Mas quando, diante de uma engenhosa argumentação da parte cível, a condessa, após um átimo quase imperceptível de recolhimento, volta o belo rosto e da efígie puríssima seus olhos glaucos e ardentes lampejam, e suas respostas se revelam meditadas, prontas, diretas, vocês passam a sentir que a alma dessa mulher não é assim tão simples como poderia parecer à primeira vista (Sciascia, 1912+1, p. 31). Sorriso, olhos glaucos, o enigma de uma mulher-esfinge (e a condessa Tiepolo mata, como faz a Esfinge), o enigma de duas mulheres-esfinge, Monalisa e a condessa Tiepolo, aglutinadas nesse ano de 1913, tornadas simultâneas naquilo que Barthes chamou de a estrutura do fait divers. É justamente a partir do assassinato, do detetivesco, que Barthes inicia:
Eis um assassinato: se é político, é uma informação, se não o é, é uma notícia. (...) O fait divers nos diz que o homem está sempre ligado a outra coisa, que a natureza é cheia de ecos, de relações e de movimentos; mas, por outro lado, essa mesma causalidade é constantemente minada por forças que lhe escapam (...). No fait divers, a dialética do sentido e da significação tem uma função histórica bem mais clara do que na literatura, porque o fait divers é uma arte de massa: seu papel é, ao que parece, preservar no seio da sociedade contemporânea a ambiguidade do racional e do irracional, do inteligível e do insondável. (Barthes, "Estrutura da notícia", Crítica e verdade, trad. Leyla Perrone-Moisés, Perspectiva, 2007, p. 57, 63 e 67).
2) Como escreve Sebald em Vertigem, esse breve romance de Sciascia se desenrola muito mais como ensaio do que como relato, um ensaio sobre essa estrutura da notícia, do fait divers como ligação a uma natureza "cheia de ecos, de relações e de movimentos". Matéria-prima do próprio Sebald, cujo narrador encontra Salvatore, o jornalista que está lendo 1912+1 dentro de Vertigem, para saber mais detalhes sobre uma série de assassinatos ocorridos na Itália (cometidos por uma tal Organização Ludwig, como o narrador descobre em uma notícia do Gazzettino, de Veneza - p. 64). De novo o assassinato, e a fixação do narrador de Sebald com os fait divers ecoa numa passagem posterior, quando ele responde a Luciana sobre o que está escrevendo, "eu próprio não sabia direito, mas que tinha a crescente sensação de que se tratava de um romance policial" (Vertigem, p. 77).
3) O sorriso da condessa Tiepolo e da Monalisa voltam a se encontrar no sorriso da Condessa descalça, a condessa Torlato-Fravrini de Ava Gardner no filme de Mankiewicz: também aqui um assassinato e a imagem de uma mulher-esfinge, um desvio fetichista como aquele que Freud encontra na Gradiva, de Jensen (o romance é de 1902, o ensaio de Freud de 1907). O filme de Mankiewicz é sobre o cinema e sobre as estratégias de criação de celebridades - tanto a condessa Torlato-Favrini de Mankiewicz quanto a condessa Tiepolo de Sciascia adquirem seus títulos por conta de suas transformações em fait divers, foram extraídas de seus contextos e transformadas em figuras tautológicas, que aparecem para justificar o próprio aparecimento. Não a mulher real, mas o fetiche, a prótese - não é um acaso que Ava Gardner tenha sido transformada em imagem/estátua em pelo menos três filmes: One Touch of Venus, de 1948, Pandora and the Flying Dutchman, de 1951, e The Barefoot Contessa, de 1954, e feita estátua também como homenagem póstuma, em 1998, na cidade de Tossa de Mar.   

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