1) Pereira, o protagonista de Afirma Pereira, o romance que Antonio Tabucchi publica em 1994, começa a "ler o conto de Maupassant que ele próprio traduzira, para verificar se havia alguma correção a fazer". Não encontrou nada, "o conto estava perfeito, e Pereira congratulou-se". Tradução e resistência: passar uma mensagem política na própria movimentação temporal dos textos, na própria movimentação cognitiva dos idiomas, como fez Isaac Bábel com o mesmo Maupassant. Tanto para Bábel quanto para Pereira a tradução serve como materialização da circulação de ideias, ampliação do horizonte de experiência, fuga do totalitarismo e de seu monolinguismo característico.
2) E no caso de Afirma Pereira o contexto deixa essas aproximações ainda mais complexas e produtivas: Pereira é um fantasma que chega a Tabucchi como "um personagem à procura de um autor", mas um fantasma que lhe chega de Portugal, um fantasma que lhe chega em português (Bábel com o francês, Gógol com o italiano, Tabucchi com o português). Além disso, Tabucchi fantasia o encontro de Pessoa e Pirandello em uma breve peça de teatro intitulada Chamam ao telefone o senhor Pirandello, de 1988, e adapta a convocação fantasmática de personagens de Pirandello ao caso de Pessoa em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de 1994.
3) Continua Tabucchi: "Depois tirou do bolso do paletó um retrato de Maupassant que tinha encontrado numa revista da Biblioteca Municipal. Era um retrato a lápis, feito por um pintor francês desconhecido. Maupassant tinha um ar desesperado, com a barba desleixada e os olhos perdidos no vazio, e Pereira pensou que era perfeito para acompanhar o conto. Afinal, era um conto de amor e morte, precisava de um retrato que tendesse ao trágico". A evocação imagética de Maupassant, que é seguida de uma citação da enciclopédia que Pereira consulta - a imagem do escritor como um talismã, que Pereira guarda "no bolso do paletó" (Afirma Pereira, Tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, 2013, p. 39).
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