1) Afirma Pereira é um trabalho de citação, um trabalho da citação - Tabucchi está citando Pereira, glosando seu testemunho, esmiuçando suas palavras. E nesse movimento de citação está outrando-se, para citar a expressão de Fernando Pessoa (que é por sua vez continuamente citado por Tabucchi ao longo de sua obra). A citação quebra a pretensa naturalidade da progressão narrativa, dando conta de denunciar continuamente a natureza procedimental e artificiosa dessa mesma narrativa (e nisso Pereira é um personagem barthesiano, sobretudo do Barthes do "efeito de real" e da "ilusão referencial", já que Tabucchi "esvazia o signo" a partir da repetição e do "afastamento radical de seu objeto", questionando a "plenitude" da representação (Roland Barthes, "Efeito de real", O rumor da língua, tradução de Mario Laranjeira, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2004, p. 190)
2) Pereira repercute essa dinâmica procedimental da citação em sua própria vida, em suas atividades, em sua circulação intelectual e política: além de Tabucchi armar um cenário polifônico, no qual a citação funciona como um sistemático posicionamento do outro, também Pereira, com suas traduções e seus necrológios e suas efemérides, coloca o outro em circulação, criando posições de enunciação que estão simultaneamente preenchidas e vazias. Fazer o outro falar, fazer o morto falar - e é precisamente nesse ponto que surge a citação, como uma espécie de ponto de contato entre ficção e historiografia. Na tradição de Walser, Hrabal ou Borges, Pereira é uma figura subalterna, que vive a História de forma parasitária, requisitando textos e presenças do passado e desenvolvendo sua personalidade e sua experiência de mundo a partir desses elementos estrangeiros.
3) Depois que o diretor do jornal Lisboa o chama, reclamando das traduções de escritores franceses e exigindo a aparição de algum autor português, Pereira abandona sua tradução de Georges Bernanos e decide buscar algo em Camilo Castelo Branco, mas logo desiste: "Deixou de lado as novelas de Castelo Branco, retomou Bernanos e pôs-se a traduzir o resto do capítulo. Se não podia publicá-lo no Lisboa, fazer o quê?, pensou, quem sabe poderia publicá-lo num volume, pelo menos os portugueses teriam um bom livro para ler, um livro sério, ético, que tratava de problemas fundamentais, um livro que faria bem à consciência dos leitores, pensou Pereira" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, 2013, p. 131). O momento em que Pereira abandona a utilidade da tradução, ou seu propósito, e a realiza simplesmente com o objetivo de fazê-la.
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