quinta-feira, 18 de setembro de 2025

50 desenhos


1) Depois de revisar o comentário que faz Cristina Rivera Garza sobre o livro de Alice Oswald, no qual resgata a Ilíada a partir dos soldados mortos, reencontro o manuscrito da Ilíada do século V com suas iluminuras, suas miniaturas - pouco mais de 50 desenhos sobreviveram, depois de recortadas e coladas em um segundo manuscrito, 600 anos mais jovem: as figuras foram, primeiro, desenhadas nuas e, posteriormente, cobertas com roupas de tinta (todas as imagens, aliás, cuidadosamente numeradas: seguindo a cronologia da história, seguindo o encadeamento e a sucessão das páginas) (Um adendo importante e revelador: boa parte das miniaturas são visíveis no site do Instituto Warburg). 

2) Sobre o projeto de Oswald, escreve Rivera Garza: "É, portanto, em primeira instância, uma pilhagem. A poesia olha de soslaio para a história e, com o bisturi na mão, retira do pântano de dados e anedotas o momento único e indivisível em que um ser humano perde sua vida. Afinal, isso é a guerra; é disso que se trata a guerra: como seres humanos de carne e osso perdem suas vidas violentamente. Armado, então, com os instrumentos da poesia, Oswald arranca essa perda que é a morte do acúmulo de dados ou de sangue que tantas vezes leva à indiferença, à insensibilidade ou a leituras desconexas" ("Usos do arquivo: do romance histórico à escrita documental", Os mortos indóceis, trad. J. R. Terron, WMF Martins Fontes, 2024, p. 150).

3) De resto, a pilhagem também é um tema homérico, parte constituinte do mundo da guerra homérica: viajar, conquistar, pilhar, retornar (nesse sentido, o procedimento poético de Oswald - semelhante àquele de María Negroni em livros como Archivo Dickinson ou Objeto Satie ou Cartas extraordinarias, precisamente o procedimento da pilhagem, do rearranjo do que já existe, etc - é homérico não só em seu tema ou conteúdo (os 200 soldados reiterados, singularizados), mas em sua dinâmica formal, na transformação da pilhagem em método de organização da poesia (que se desdobra em um segundo ponto fundamental: a enumeração, como aquela que faz o próprio Homero com as naus, por exemplo). 


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