Ainda no "caso espírita" de Leskov, o que de imediato chama a atenção é que se trata de uma narrativa sobre a leitura: a princesa recorre às obras da senhora Genlis sempre que precisa de alguma resposta ou direcionamento para a vida, ação que ela inclusive recomenda a outros, como, por exemplo, ao narrador (e nesse ponto específico, de buscar o futuro da vida na leitura de um fragmento textual escolhido ao acaso, Leskov encontra um eco latino-americano em Prisão perpétua, de Ricardo Piglia, que conta com uma personagem que consulta o I-Ching para saber se precisa consultar o I-Ching).
O procedimento dá certo algumas vezes - realmente, quando um personagem vai aos livros e os abre ao acaso, surge uma frase que, com boa vontade, serve à situação. O ponto central do conto, no entanto, está no momento em que o procedimento não dá certo: a filha da princesa, inocente, sempre muito protegida e guardada dentro de casa, é chamada para provar a confiabilidade do procedimento. O trecho que lhe cabe, no entanto, não tem nada de inocente: trata-se de um trecho das memórias da senhora Genlis no qual ela descreve seu encontro com o historiador (1737-1794), notório por sua gordura:
Gibbon é de pequena estatura, extraordinariamente gordo e tem um rosto admirabilíssimo. Neste, não era possível distinguir nenhum traço. Não se via nariz, não se viam olhos, nem boca; duas bochechas gordurentas, gordas, parecidas sabe lá o diabo com quê, absorviam tudo... Elas eram tão inchadas, que se haviam afastado de qualquer senso de proporcionalidade minimamente digna para as maiores bochechas do mundo; qualquer pessoa que as visse, deveria perguntar-se: por que não foi essa coisa colocada no seu lugar de direito? Eu caracterizaria o rosto de Gibbon com uma única palavra, se me apenas fosse possível dizer tal palavra. O duque de Lausanne, que era íntimo de Gibbon, levou-o, certa vez, à casa de Mme. Dudeffand. Ela estava já cega e tinha o costume de tatear com as mãos o rosto das pessoas notáveis que lhe eram apresentadas. Desse modo, adquiria uma ideia bastante fiel dos traços do novo conhecido. Pois ela aplicou o mesmo método tátil a Gibbon, e isso foi uma desgraça. O inglês aproximou-se da poltrona e com toda a bonacheirice ofereceu o seu admirável rosto ao toque da anfitriã. Mme. Dudeffand estendeu para ele as suas mãos e passou os dedos por aquele rosto esférico. Ela procurava esforçadamente alguma coisa em que parar, mas isso não foi possível. Então, o rosto da senhora cega primeiramente expressou espanto, depois fúria e, por fim, ela, retirando bruscamente as mãos com nojo, deu um berro: "Que brincadeira mais infame!" (p. 21-22)
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