sábado, 14 de setembro de 2024

Arqueologia do descontentamento



1) Existe um sentimento de descontentamento diante da própria época, diante da própria contemporaneidade, que funciona como um fio que une e articula uma série de obras e poéticas: é possível começar com Leonardo Sciascia que, apesar de ligado à política (portanto, aos debates e às burocracias de sua época), exaltava outros tempos, outros gestos, outros interesses e sentimentos (aqueles de Voltaire, por exemplo), sempre manifestando descontentamento com o embrutecimento que diagnosticava na sociedade ao seu redor (o caso Aldo Moro é paradigmático dessa situação).

2) A partir de Sciascia, é possível prosseguir em direção àquela que é sua principal referência, Stendhal, também ele marcado pelo cultivo de um desajuste com sua própria época (e, assim como Sciascia, um descompasso que é ambivalente: Stendhal exaltou seu contemporâneo Napoleão e todas as mudanças que o Imperador desencadeou), buscando nos arquivos italianos os traços luminosos de um passado que ele reconhecia como mais condizente com sua sensibilidade (Crônicas italianas); assim como Sciascia leu Stendhal com devoção, o mesmo fez Stendhal com Montaigne: é do inventor do ensaio que fez a potência do "eu", a capacidade virtualmente infinita de dar voltas ao redor dos próprios medos e ambições, capacidade essa que é o centro da invenção ficcional do próprio Stendhal (Souvenirs d'égotisme).

3) Montaigne também é um bom exemplo da tensão entre o pertencimento do artista à própria época e seu desejo de ser sozinho, de estar isolado - Montaigne que foi prefeito de Bordeaux entre 1580 e 1581 e que também mandou construir uma torre para melhor trabalhar em solidão. E, a partir de Montaigne, é possível pensar em Plutarco, uma de suas referências constantes: vive no Império Romano (nasce por volta de 46, morre por volta de 120), mas escreve em grego; foi sacerdote, magistrado e uma espécie de diplomata; sempre atento aos meandros políticos do presente imediato, mas permanentemente ligado às camadas metafísicas da experiência (falava em Alma e em Providência).

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Richepin


"No mais das vezes, Léon Marcia permanece silencioso e imóvel, mergulhado nas lembranças: uma delas, que emerge do mais profundo de sua prodigiosa memória, há vários dias o obceca: uma conferência que, pouco antes de morrer, Jean Richepin viera fazer no sanatório; o tema era a Legenda de Napoleão. Richepin contou que, quando era pequeno, costumava-se abrir uma vez por ano o túmulo de Napoleão, diante do qual desfilavam os inválidos para ver a face do imperador embalsamado, espetáculo mais propício ao terror que à admiração, pois o rosto estava inchado e verde; daí talvez a razão de a abertura do túmulo haver sido suprimida logo após. Mas Richepin teve a oportunidade excepcional de vê-lo, empoleirado no braço do tio-avô que servira na África e para quem o comandante dos Inválidos mandara abrir especialmente o túmulo" (Georges Perec, A vida: modo de usar, trad. Ivo Barroso, Cia das Letras, 1991, p. 188-189).

"Tome agora o tempo e o espaço. Suponhamos que uma criança lhe diga: 'Eu quero ser Napoleão na Batalha de Wagram', o senhor lhe diz: 'É impossível, ele está morto'. 'Que diferença isto faz?', insiste ela. Então o senhor diz: 'Ora, você sabe, isso foi há muito tempo. O corpo de Napoleão se decompôs. Você não poderá encontrá-lo'. Se a criança é esperta, dirá: 'Suponha que reunamos de novo todos os átomos de seu corpo e seu sistema mental; então poderíamos ver Napoleão em Wagram? Por que não?'. 'Sim, isso é possível de modo empírico'. A criança diz a seguir: 'Quero ver Wagram no passado: poderíamos em princípio fazê-lo reviver? Através de uma nova invenção associar de novo os átomos e moléculas dispersos?'. O senhor fala então: 'Você não pode viajar no passado'. 'Por que não?', pergunta ela. Um positivista diria que 'viajar' é uma péssima metáfora. Tudo o que entendemos por tempo é 'antes', 'depois', 'ao mesmo tempo'. Uma entidade tal que o 'tempo' no qual você poderia viajar não existe. O senhor utiliza incorretamente a linguagem. A criança pergunta agora: 'Se é um problema de linguagem, por que não mudá-la? Então eu poderia ver Napoleão em Wagram?'" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 171-172)

"O mito napoleônico tem realmente dado origem às mais espantosas histórias, sempre reputadas como baseadas em fatos irrefutáveis. Kafka, por exemplo, conta que a 11 de novembro de 1911 assistiu a uma conferência sobre o tema 'La légende de Napoléon', no Rudolphinum, em que um tal Richepin, cinquentão encorpado de bela figura, cabelo ondulado largo no estilo Daudet, bem colado à cabeça, dissera, entre outras coisas, que antigamente costumavam abrir o túmulo de Napoleão uma vez por ano para que os Invalides pudessem desfilar contemplando o imperador embalsamado. Mas depois o rosto foi ficando esverdeado e manchado e interromperam o costume da abertura anual do túmulo. Segundo Kafka, o próprio Richepin vira o imperador morto, quando criança, no colo de seu tio-avô que fora militar na África e para o qual o comandante mandara abrir propositadamente o túmulo. A entrada do diário de Kafka prossegue dizendo que, a concluir a conférence, o orador jurou que mesmo dali a mil anos cada partícula de pó do seu cadáver, se tivesse consciência, estaria pronta a responder à chamada de Napoleão" (W. G. Sebald, "Pequena excursão a Ajácio", Campo santo, trad. Telma Costa, Lisboa: Quetzal, 2014, p. 12).


quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Kafka e os oradores


Um dos problemas principais enfrentados por Kafka em seus Diários (e também em sua obra narrativa de uma forma geral) é aquele da exposição do corpo individual diante do olho social e seu julgamento (seus ritos, suas interdições). Daí surge a ênfase de Kafka, no diário, na vida dos atores e seu interesse no relato das performances de profissionais bem sucedidos e, principalmente, de palestrantes (ele vai, com muita frequência, ver apresentações de trupes itinerantes - de teatro judaico, por exemplo -; vai também frequentemente assistir conferências em centros culturais - também alguns deles judaicos). Muitas das partes mais elaboradas do diário envolvem o registro do contato com oradores carismáticos – Rudolf Steiner, Karl Kraus, o militar francês Richepin, que viu o cadáver de Napoleão quando criança. Kafka mede a si mesmo e a seus personagens a partir do exemplo – vocal, corporal, aurático – desses indivíduos sedutores e estranhos (é já canônica a cena de Kafka lendo seus manuscritos para os amigos).

(o título desta entrada é uma referência ao excelente livro de Michael Baxandall, Giotto e os oradores)