terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guerra



1) Toda a história ao redor da publicação de Guerra, de Céline, é impressionante: décadas depois da escrita, décadas depois das guerras (tanto a Primeira, na qual Céline se feriu, quanto a Segunda, na qual atuou como colaborador/simpatizante nazista), décadas depois do roubo dos manuscritos, o livro ressurge, os manuscritos são decifrados e uma edição é feita, primeiro na França e, agora, no Brasil (tradução excelente de Rosa Freire d'Aguiar). Apesar da brevidade, Guerra mostra o mesmo Céline dos grandes livros - Morte a crédito, De castelo em castelo e assim por diante: a intensidade do estilo, a força escatológica e desencantada das imagens.

2) O ponto central do romance é a cabeça do seu protagonista, Ferdinand - o que não deixa de ser relevante e representativo da poética de Céline como um todo, muito dependente da fabulação maníaca dessa "cabeça", dessa mente, dessa imaginação tão singular. Existe um fato concreto que condiciona essa elaboração a partir da cabeça, da mente e da imaginação: Ferdinand é ferido na guerra (exatamente como o foi Céline, no dia 27 de outubro de 1914, em Poelkapelle, Bélgica), no braço e na cabeça, por conta de uma explosão. "Peguei a guerra na minha cabeça", ele escreve; "Ela está trancada na minha cabeça" (o que faz pensar nas Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, e na gravura que faz Jan Peter Tripp - como conta Sebald - da cabeça de Schreber povoada por "monstros"). 

3) Já no final do romance, por exemplo, Ferdinand reitera os efeitos do ferimento sobre sua vida pós-guerra: "Era preciso fazer o enorme esforço de não ceder à angústia de não poder dormir, nunca mais, por causa dos zumbidos que nunca terminarão, nunca a não ser junto com a vida. Peço desculpas. Insisto mas é a minha melodia. Azar, não fiquemos tristes" (Cia das Letras, 2024, p. 123). A falta de sono, de certa forma, gera o estilo peculiar do narrador (como a asma em Proust, segundo Walter Benjamin); o "zumbido" é projetado em direção ao futuro - o narrador tem certeza que o acompanhará para sempre, já que a vida, a partir do ferimento, está indissociavelmente ligada ao trauma (só a morte pode fazer algo a respeito); por fim, a "melodia": eu "insisto", diz o narrador, mas essa ladainha é "minha melodia", ou seja, sua poética, seu estilo, seu "canto" (pela via de Homero (a guerra!), "Canta para mim, ó Musa"...).

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