quarta-feira, 29 de março de 2023

Como me tornei francês



1) Reparando nas datas, é impressionante a transformação ocorrida na trajetória de Andrei Makine: chega à França clandestinamente em 1987, em condições precárias; em 1990, publica seu primeiro romance, La Fille d’un héros de l’Union soviétique; em 1992, o segundo, Confession d'un porte-drapeau déchu (ambos são publicados como traduções do russo - os nomes dados aos tradutores nas edições, contudo, são criações do próprio Makine, são pseudônimos; ele próprio havia escrito os romances já em francês); em 1995, Makine lança O testamento francês, seu terceiro romance, premiado com o Goncourt e o Médicis. 

2) É instrutivo, tendo em mente os comentários que faz Jacques Derrida sobre as relações entre língua e nacionalidade em O monolinguismo do outro, reter a informação de que Makine só obteve a nacionalidade francesa em 1996, depois da chancela (da autorização?, do testemunho?) dos prêmios literários (uma nacionalidade que Makine solicitava desde o início da década de 1990, sempre recusada). Derrida se coloca no centro de um pertencimento inequívoco, aquele da língua francesa (falando da inadequação dos sotaques, por exemplo), para em seguida "desconstruir" a noção de pertencimento postulando sua própria inadequação inequívoca (como judeu e argelino).

3) Essas duas linhas (a de Makine e de Derrida) se encontram, de certa forma, quando o primeiro publica, em 2014, o livro Le pays du lieutenant Schreiber, uma biografia-entrevista de Jean-Claude Servan-Schreiber, Ex-Membro da Assembleia Nacional Constituinte da França e combatente na II Guerra Mundial, oriundo de uma família judia de origem alemã. Em certos momentos, o livro anuncia sutilmente um desejo de Makine de absorver, por contágio ou proximidade, toda a "francesidade" de Servan-Schreiber, exaltando sua participação em momentos-chave da história do país no século XX, começando por sua fuga da França ocupada pelos nazistas; o contato com esse francês quase centenário parece permitir a Makine também um uso renovado da língua francesa, dando acesso a certos termos até então interditados (héroïsme, sacrifice, honneur, patrie). 

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