terça-feira, 9 de agosto de 2022

Belano em Luanda

1) Uma das premissas mais importantes do pensamento pós-colonial é que não basta simplesmente inverter os termos, aquilo que está "embaixo" agora está "no alto", aquilo que era valorado positivamente agora é tomado de forma negativa, e assim por diante; é preciso que seja instaurado um sistema de referências em permanente oscilação, como faz Roberto Bolaño em um romance como Os detetives selvagens: corpos latino-americanos se deslocam no tempo e no espaço, colocando em relato as experiências de seus deslocamentos e ocupando, dessa forma, pontos estratégicos de uma investigação acerca de uma herança (de trauma e violência) e de uma possibilidade de futuro (Sión, a terra prometida, a flecha que nunca chega no alvo).

2) O modo como Xosé Lendoiro, por exemplo, em Roma, dando seu testemunho em outubro de 1992, pontuando seu relato com frases em latim, dando conta da passagem de Arturo Belano pela Espanha, por Barcelona, pela Catalunha, um relato ao mesmo tempo comovente, ridículo e solene diante da literatura (la poesía, esa mala pécora que me ha acompañado a traición durante tantos años); ou Jacobo Urenda, falando de Paris em junho de 1996, contando de quando conheceu Arturo Belano em Luanda, em Angola, um argentino e um chileno, e como Urenda fala que sempre que volta a Paris dessas viagens é como se não estivesse de volta, é como se "ainda estivesse sonhando" (a oscilação, sempre: ...seguimos conversando. O tal vez no. Tal vez allí nos separamos).

3) Ainda Urenda (que é fotógrafo, como el Ojo Silva, de Putas assassinas), que fala de Arturo Belano: Antes de marcharme tuvimos una última conversación. Su historia era bastante incoherente. Trata-se, sem dúvida, de uma incoerência que não é exclusiva de Belano, mas estrutural, sistêmica - uma história contraditória que mescla o subjetivo e o coletivo. Essa "incoerência" é a diáspora, a dispersão e o exílio, mas também uma espécie de cifra que leva o leitor - de forma detetivesca - a uma lógica não-cartesiana e não-fundacional, errática e descontínua (mi generación leyó a Marx y a Rimbaud hasta que se le revolvieran las tripas), ligada à pulsão e ao inconsciente (incoerente como a chaleira de Freud, por exemplo: eu devolvi a chaleira em perfeito estado, ela já estava com um buraco quando peguei e, além do mais, eu nunca peguei emprestada qualquer chaleira).   

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