terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Comediantes



1) O procedimento de Hugh Kenner em Os comediantes estoicos, seu livro de 1962: partir de um questionamento de ordem técnica que chega para aprofundar uma situação de desespero de ordem filosófica; em outras palavras, as inovações tecnológicas na dimensão da escrita (da impressão com tipos móveis à máquina de escrever) estão sobrepostas à arcaica dimensão desesperadora da palavra na "página em branco", a condição existencial sempre em falta daquele que se ocupa da linguagem (algo que, no fim das contas, aponta Kenner já na primeira página do livro, se reduz ao arranjo e rearranjo de "vinte e seis letras", sempre as mesmas).

2) O estoico, na acepção de Kenner, é aquele que reconhece que o campo de possibilidades disponível (para a arte, a linguagem ou a vida) é limitado - precisamente como a caixa de tipos móveis do impressor da época de Gutenberg; ou a "caixa tipográfica das coisas esquecidas" de que fala Sebald em Austerlitz. O estoico está, de certa forma, imune às surpresas, por mais que não saiba de antemão a totalidade dos resultados possíveis - isso porque parte do princípio da limitação material dos recursos disponíveis a sua arte. Os três autores definidos como "comediantes estoicos" - Flaubert, Joyce e Beckett - exploram com "humor" essa condição ambivalente da arte: falar de si continuamente, impelida adiante por uma consciência de suas próprias limitações, desconfiada das próprias pretensões e possibilidades, sem que possa voltar atrás em seu "compromisso" produtivo. 

3) Kenner fala de Flaubert como o "comediante do Esclarecimento", do "Iluminismo", da Aufklärung, que toma como "compromisso produtivo" a categorização dos insanos empreendimentos intelectuais das sociedades ocidentais; Joyce, por sua vez, é definido por Kenner como o "comediante do Inventário", cujo compromisso está ligado às listas, às correspondências e ao rigor "estrutural" no romance (um estilo, um órgão, uma cor, um alimento, uma figura mitológica...); Beckett, por fim, é o "comediante do Impasse", o produtor das vias sem saída, que vai pouco a pouco descarnando o relato (sobre Esperando Godot, que estreou em 1953, um crítico da época escreveu: “Nada acontece, duas vezes!”).

Nenhum comentário:

Postar um comentário