terça-feira, 8 de junho de 2021

O volume carmesim


1)
Em Austerlitz, Sebald posiciona estrategicamente uma menção à novela de Balzac, O coronel Chabert, que funciona como uma espécie de dispositivo que permite o retorno de fantasmas e espectros do passado - com isso, Sebald oferece um comentário sobre Balzac que também é um uso do texto, uma performance e uma atualização a partir de um texto do passado (que passa a fazer parte da dinâmica de um texto do presente, exemplificando dessa forma a ideia sebaldiana, defendida em diferentes facetas ao longo de Austerlitz, de que passado e presente estão em diálogo, em relação constante).

2) Vera entrega a Austerlitz "duas fotografias de formato pequeno", encontradas "por acaso em um dos cinquenta e cinco volumes carmesins de Balzac que lhe fora parar nas mãos"; ela encontra as fotografias "folheando as páginas da famosa história da grande injustiça sofrida pelo coronel Chabert", mas "como as duas fotos tinham ido parar entre as páginas era um mistério para ela"; esses artefatos tem "uma natureza insondável", "própria de tais fotografias emersas do esquecimento": a impressão é "que alguma coisa se agita dentro delas, como se ouvíssemos pequenos gemidos de desespero", como se "as fotos tivessem memória própria e se lembrassem de nós, de como nós, os sobreviventes, e aqueles que já não estão entre nós, éramos então" (p. 178-180). 

3) A novela de Balzac é tanto um adereço cênico - que ocupa um determinado espaço na trama, que contribui para oferecer informações que até aquele momento não se tinha - quanto um cristal complexo de condensação de temporalidades e ideias (o coronel morto que retorna, a infância soterrada de Austerlitz que retorna). Em Balzac, Chabert é essa entidade do passado que tem "memória própria" e que lembra de como eram os sobreviventes e os não-sobreviventes, especialmente Napoleão; em Sebald, essa potência da entidade que vem do passado é tornada difusa e canalizada para um comentário sobre a aura ambígua da fotografia - uma dimensão difusa, contudo, que é tornada palpável e contundente com o recurso ao livro como artefato e objeto, encontrado "por acaso". 

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