segunda-feira, 5 de abril de 2021

O anjo da guarda


1) Falar dos "anjos" na poesia é um gesto complexo, carregado de camadas que evocam desde Baudelaire até Rilke e o "anjo da história" de Benjamin (não é por acaso que Augusto de Campos fala de Coisas e Anjos de Rilke). O "anjo" carrega consigo a dimensão de uma entidade que oscila entre a proteção e a indiferença, espécie de elo entre a experiência mundana e uma projeção possível em direção ao inefável, ao invisível (O anjo silencioso de Heinrich Böll, por exemplo, é uma estátua despedaçada, uma ruína que assusta por sua imobilidade, por sua indiferença diante do que acontece ao seu redor).

2) Charles Simic publica, na coletânea The World Doesn't End (1989), um poema intitulado "My guardian angel is afraid of the dark", meu anjo da guarda tem medo do escuro (que dá título à coletânea brasileira). O anjo tem medo do escuro e nega: manda o "protegido" ir na frente e diz que logo ele chega (sends me ahead, tells me he'll be along in a moment); mas a escuridão é enorme, deve ser "o canto mais escuro do paraíso", como sussurra alguém (“This must be the darkest corner of heaven,” someone whispers behind my back). O anjo da guarda, apesar de existir, já não cumpre sua função, chamando a atenção para a própria inadequação (uma condição de inoperosidade que é tornada possível pelo medo, como se o sentimento forçasse o anjo a uma situação que ele não consegue aceitar ou assumir).  

3) Essa dimensão poética da linguagem permite a construção de imagens que falam, simultaneamente, da esperança e do desespero - exatamente como o anjo de Benjamin (que no enigma auspicioso de sua existência fala da destruição e das ruínas), o anjo de Simic é estimulante por sua própria existência, até o momento em que se revela inútil, medroso, omisso. O anjo é uma das figuras de acesso àquilo que Eric Santner, seguindo Rilke, chama de "vida criatural", On Creaturely Life, um estudo que parte de Heidegger para pensar as inscrições do poder e da autoridades nos corpos e nas vivências, ou ainda, a dimensão biopolítica da oscilação entre "experiência mundana" e "projeção possível do inefável", chegando à obra de W. G. Sebald (a parte autobiográfica de Nach der Natur pode ser lida como uma glosa indireta à ideia de um "anjo da guarda" que tem "medo do escuro"). 

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