domingo, 25 de abril de 2021

Ar estúpido


1) Outro aspecto da poética de Sebald que pode ser lido em contraste com a obra de Kafka é sua preocupação com as "vidas infames", com os personagens menores da História movimentados, mobilizados e violentados pelo Estado, pela Ciência, pelos dispositivos de manutenção dos corpos e assim por diante. A questão está posta, por exemplo, desde o início de Os anéis de Saturno, com a discussão sobre o corpo do ladrão (Aris Kindt, Adriaan Adriaanszoon), aberto e exposto na "lição de anatomia", diante de uma plateia ávida que faz pensar na plateia que precisava ser contida com um firme corrimão, como escreve Kafka em Na Colônia Penal (o oficial está relembrando os bons tempos da máquina de escritura/tortura para o explorador, agente do progresso).

2) Contudo, aquilo que em Rembrandt é ordem, controle e organização, em Kafka é desordem e confusão - o mundo já não é mais o mesmo, a divisão cartesiana clara entre sujeito e objeto (o Discurso sobre o Método é de 1637, o quadro é de 1632) está em processo de esfarelamento. O condenado em Kafka é "uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho", vivendo uma "sujeição canina" (p. 29) (embora saibamos que todo recurso ao animal em Kafka envia em direção a outra camada de sentido, mais da resistência do que da opressão - o condenado da Colônia penal aparece no início da narrativa pela perspectiva do oficial que manipula a máquina e do soldado que o acompanha).

3) O oficial diz ao explorador: "O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo" (p. 36). O sujeito levará inscrito no corpo o mandamento transformado em sentença, transformado em destino (serve de lição coletiva, já que toda a comunidade vê a máquina em funcionamento, exatamente como na cena de Rembrandt). O processo de tortura leva 12 horas. Na sexta hora, algo acontece, diz o oficial: "O entendimento ilumina até o mais estúpido" (p. 44), Verstand geht dem Blödesten auf. Esse esclarecimento faz da tortura uma espécie de evento sagrado, na perspectiva do oficial, que interpreta a derrocada do corpo do condenado na sexta hora como um êxtase (é possível pensar como o corpo de Aris Kindt em Rembrandt evoca a figura do Cristo morto).  

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